Guilherme Santana / VICE
David e Fábio são homens que nasceram com vagina e estão na fila do SUS para fazer a cirurgia de transgenitalização
Quando era criança, Gabriela* entrava no banho e fechava os olhos. “A fada madrinha com a varinha mágica vai me mudar”, pensava. Ao abrir os olhos, via que nada mudava. Foi aos cinco anos que ela percebeu que era diferente. Quando estava no prezinho, sua mãe comprou um vestido de estrelinhas para que vestisse na formatura. “Falei que não ia colocar e chorava, mas ela venceu pelo cansaço”, conta. “Vesti e fiquei a formatura toda de cara fechada, não tem uma foto minha sorrindo. Depois disso, jurei pra ela que nunca mais colocaria um vestido na vida. E nunca mais coloquei.”
Gabriela foi criada como uma menina porque nasceu com uma vagina. Aos 18 anos, cansou de tentar fingir ser o que não era. Bateu de frente com família, cortou o cabelo e passou a usar roupas mais masculinas. Gabriela se percebeu David*, um homem transexual.
Pra quem pegou o bonde andando no debate sobre questões de gênero, uma breve explicação: pessoas transexuais são aquelas que não se identificam com o gênero ao qual foram designadas ao nascer. David foi designado mulher porque veio ao mundo com uma vagina, mas nunca se identificou com esse gênero. O conceito de identidade de gênero, vale ressaltar, é diferente de orientação sexual e do sexo. Gênero é uma construção social, enquanto orientação sexual remete àquilo pelo que nos atraímos e o sexo é estabelecido como o biológico, aquilo com o que nascemos entre as pernas.
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Hoje com 28 anos, David está na fila do Sistema Único de Saúde (SUS) para fazer duas cirurgias: mastectomia (a retirada dos seios) e a transgenitalização (mudança de genitália). O Hospital das Clínicas (HC) da Universidade de São Paulo é um dos cinco centros no Brasil que fazem o processo transexualizador, além do Hospital das Clinicas da Universidade Federal de Goiás, em Goiânia, Hospital de Clínicas de Porto Alegre, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Hospital Universitário Pedro Ernesto, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro e Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco, no Recife. De acordo com informações do Ministério da Saúde, já foram feitos 6.724 procedimentos ambulatoriais e 243 procedimentos cirúrgicos nos serviços habilitados para o processo transexualizador do SUS. A idade mínima para o processo é de 18 anos; para a cirurgia, 21.
David vive como homem há 10 anos, e está em terapia há dois no HC. Ele conta que descobriu o que era a transexualidade depois de ver na TV o João Nery, considerado o primeiro homem trans do Brasil. David espera fazer sua operação em 2017. A fila de cirurgia para os homens trans anda bem mais rápido do que a fila para as mulheres — a média de espera delas é de uns 10 anos. O grupo de terapia de David tem 15 pessoas; apenas quatro são homens transexuais. A busca pela cirurgia de redesignação sexual entre os homens transexuais é menor. De acordo com dados do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) – um dos pivôs do debate sobre a patologização das identidades trans –, a incidência de homens trans é bem menor do que a de mulheres trans: existe uma mulher trans a cada 30 mil pessoas e um homem trans a cada 100 mil.
A psicóloga Maya Foigel, do Hospital das Clínicas da USP, explica que o processo transexualizador do SUS — tanto para homens trans quanto para mulheres trans — consiste em uma triagem e no mínimo dois anos de psicoterapia para a obtenção de um laudo multidisciplinar, assinado por um psicólogo, um psiquiatra e por um assistente social, para que a pessoa possa passar pelas cirurgias. O ambulatório responsável por esse processo no HC é o AMTIGOS (Ambulatório de Transtorno de Identidade de Gênero e Orientação Sexual).
Maya conta que a terapia compulsória para a cirurgia torna o trabalho um pouco mais complicado, mas o retorno é bastante positivo. “No começo, a gente é encarado como inimigo, como aquele que julga, aquele que define se a pessoa vai operar ou não, então a gente tenta ao máximo sair desse papel”, diz ela. O doutor Daniel Mori, psiquiatra que também atende transexuais no HC, diz que a terapia é importante para que as pessoas trabalhem questões da vida em geral, inerentes ao ser humano. “A gente tenta tirar um pouco a ideia de que eles estão aqui só para trabalhar a transexualidade. Tem gente que chega aqui bem, não tem que trabalhar nenhuma questão de gênero”, diz ele.
Mesmo sendo compulsória, a terapia ajudou muito David a se aceitar. “No começo, eu tinha um grande preconceito comigo, achava que as pessoas não conversavam comigo por ser trans, mas depois vi que não tem nada a ver”, conta.
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Fábio: 'Passa muita coisa pela nossa cabeça, dá até medo de dar algo errado. Mas não tenho dúvidas porque quero adequar meu corpo ao que está na minha cabeça, a quem eu sou'
A cirurgia de readequação genital consiste em fazer uma vagina virar um pênis — ou vice-versa. Além do atendimento no SUS, a cirurgia também pode ser feita no sistema particular. De acordo com o médico cirurgião Marcio Littleton, a confecção de um pênis custa cerca de 40 mil reais, sem contar a grana de internação no hospital. Os mesmos laudos psicológicos e psiquiátricos também são requisitos para a cirurgia paga pelo próprio bolso.
O doutor explica que existem dois jeitos de se fazer um pênis: metoidioplastia e neofaloplastia. O primeiro consiste no aumento do tamanho do clitóris para que ele fique como um micropênis. “O clitóris é liberado e a uretra é prologanda para ficar embutida na parte de dentro desse clitóris hipertrofiado, mas a aparência é de uma genitália atrófica, de cinco, seis centímetros, como se fosse um pênis de um menino de 10 anos”, ele explica. O segundo jeito é a construção de um neofalo com outras partes do corpo. Essa cirurgia é feita em etapas: primeiro, é executada a transposição do neofalo e, depois, a confecção de uma prótese testicular para que o cara possa ter um testículo.
Mas, doutor, fica duro? “A pessoa consegue fazer penetração depois de colocar a prótese peniana, que é a mesma usada em homens com impotência”, explica o médico.
Essa prótese é bem facultativa. O doutor Littleton diz que a principal função do pênis é possibilitar à pessoa urinar em pé. “Todo mundo que tem pênis urina por ele desde que nasce até morrer, e fazem isso várias vezes por dia. A função menos utilizada é de penetração”, diz. De fato, urinamos mais do que trepamos nessa vida. Em ambas as técnicas, é possível urinar em pé e facilitar a vida dos caras na hora de ir ao banheiro.
Mas e o orgasmo? Também tive que fazer essa pergunta ao doutor Marcio e ele me disse que é possível, sim. “A gente faz o clitóris crescer com o hormônio, então na hora que o pênis é colocado no lugar dele, o clitóris ainda está ali, fica por dentro do pênis. Com o passar dos meses, nervos vão crescendo dentro do clitóris e sendo incorporados ao pênis, e a parte mais sensível fica sendo a base dele, depois o meio e por último a ponta. Fica o contrário do pênis de nascença.”
Preconceito, dor e a dúvida: ter um pênis ou não ter?
Os procedimentos para mudar de sexo ainda são tidos como experimentais.
O conceito de transexualidade atualmente se encontra no capítulo F, de doenças mentais, do CID, Classificação Internacional de Doenças. O doutor Littleton acredita que essa classificação carrega uma ideia de preconceito. “Sem sombra de dúvidas não é uma doença mental porque a mente dessas pessoas é completamente perfeita, é uma mente perfeita de homem ou uma mente perfeita de uma mulher. O que está em discordância é o corpo”, diz o doutor Littleton.
Fábio* tem 21 anos e também está na fila do SUS para fazer a mastectomia e a cirurgia de transgenitalização. Para ele, a sensação que fica da classificação de “experimental” da operação é de que será uma espécie de ratinho em laboratório. “Passa muita coisa pela nossa cabeça, dá até medo de dar algo errado. Mas não tenho dúvidas porque quero adequar meu corpo ao que está na minha cabeça, a quem eu sou”, ele diz.
Fábio também nasceu com uma vagina e, por algum tempo, se identificava como uma mulher homossexual. “Sentia que tinha alguma coisa. Você sente que aquilo não é o que você é mesmo, sabe? Tinha alguma coisa que faltava ainda ser descoberta”, ele conta. A ficha caiu quando tinha 17 anos e viu a ex-BBB transexual Ariadna na televisão com um médico do HC falando sobre o assunto. Começou a pesquisar mais sobre isso e percebeu que nunca tinha sido nem mulher, nem lésbica. Fábio é um homem heterossexual. Para ele, passar pelo procedimento cirúrgico não o fará mais nem menos homem. “Eu já sou homem, a cirurgia é só uma etapa para a readequação.”
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