A reprodução interespécies foi importante no desenvolvimento e fortalecimento do sistema imunológico humano
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Quando os neandertais e outros primos humanos pré-históricos se extinguiram, há cerca de 30 mil anos, eles não desapareceram completamente. Uma pequena parte deles ainda vive em muitos de nós.
Em 2010, cientistas revelaram que relações esporádicas entre nossos ancestrais e os neandertais (assim como com outro grupo, os denisovanos) deixou traços do DNA deles em nossos genomas. Mas o impacto evolucionário não estava bem claro. Agora um time de cientistas — liderado por Peter Parham, professor de biologia estrutural e de microbiologia e imunologia na Universidade de Stanford, nos Estados Unidos — mostrou que este troca-troca genético fortaleceu consideravelmente os sistemas imunológicos dos humanos modernos. “Esta é a primeira evidência de que havia algo de funcional na contribuição dessa mistura para os humanos modernos”, diz Laurent Abi-Rached, pesquisador associado no laboratório de Parham e primeiro autor do relatório publicado na revista Science.
Parham sempre suspeitou que alguns genes do sistema imunológico teriam uma origem ancestral. Ele estudou os genes do antígeno aos leucócitos humanos Classe I (HLA-A, HLA-B e HLA-C), conhecidos por seu papel na rejeição a transplantes e por sua incrível diversidade. Cada gene HLA tem centenas ou milhares de versões, chamadas alelos; duas pessoas que não sejam parentes raramente compartilham o mesmo grupo. Esta diversidade proporciona uma proteção contra a extinção, já que as proteínas HLA variam em suas habilidades em combater diferentes agentes patogênicos. Algumas pessoas portadoras do alelo HLA-B*57, por exemplo, podem manter uma infecção por HIV sob controle sem o auxílio de medicamentos. “Isso é um indício de que mesmo se não tivéssemos a medicina moderna, alguém sobreviveria. Seria uma extinção em massa, mas alguém ia acabar sobrevivendo”, diz Parham.
A diversidade do HLA é tão importante que ela pode até influenciar na seleção de parceiros: estudos mostram que as pessoas são atraídas pelos odores de possíveis parceiros sexuais com grupos de HLA diferentes.
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Reservatório genético
Em 1993, enquanto sequenciava os genes HLA, Parham se deparou com uma variante misteriosa: HLA-B*73. Diferentemente de outros alelos HLA, o HLA-B*73 se assemelhava a genes encontrados em chimpanzés e gorilas, o que significa que ele teria pelo menos 16 milhões de anos de idade (anterior à separação entre humanos e chimpanzés). Mas, surpreendentemente, tinha uma diversidade muito pequena, o que sugere que ele está evoluindo há pouco tempo. Era como se esse gene antigo tivesse entrado no reservatório genético humano apenas recentemente.
A explicação mais provável: humanos modernos adquiriram o gene em uma única relação entre o Homo sapiens e uma subespécie relacionada. Entretanto, esta era uma teoria impossível de ser comprovada, e que ia de encontro ao pensamento dominante na época — de que nossos ancestrais nunca teriam se relacionado com humanos arcaicos. Então, em 2010, avanços tecnológicos permitiram aos cientistas sequenciar os genomas de três fêmeas Neandertais que viveram na Croácia há mais de 40 mil anos. Eles descobriram que europeus e asiáticos, mas não os africanos, devem de um a quatro por cento de sua herança genética aos neandertais. Portanto, humanos modernos provavelmente cruzaram com neandertais quando saíram da África entre 50 mil e 80 mil anos atrás. “Mas não foi uma grande miscigenação. Foi provavalmente algo mais esparso e que ocorreu somente em alguns momentos”, acredita Parham. Mas não é surpreendente que tenha acontecido, acrescenta ele. “Tudo que aprendemos sobre a população de humanos modernos indica que onde quer que populações relacionadas se encontraram, se havia compatibilidade física, elas cruzaram e se reproduziram entre si.”
Na esteira desta descoberta, cientistas divulgaram o sequenciamento do genoma de um denisovano. Os denisovanos são parentes dos neandertais e foram descobertos em 2008, quando arqueologistas desenterraram um dedinho da mão e um dente de uma criança do sexo feminino na caverna Denisova, na Sibéria. A evidência genética mais uma vez apontou para a miscigenação pré-histórica com humanos modernos — entre quatro e seis por cento da linhagem de certas populações na Papua Nova Guiné teria vindo dos denisovanos.
Origem arcaica
O grupo de Parham imediatamente aproveitou a oportunidade para investigar o genoma em busca das sequências de HLA. Eles reanalisaram os dados das sequências do HLA-A, HLA-B e HLA-C. Formidavelmente, o genoma denisovano tinha a resposta para o grande mistério do HLA-B*73. Apesar de não ter o gene, ele continha dois alelos HLA-C com os quais o HLA-B*73 é quase invariavelmente emparelhado nos humanos modernos. “Eles apenas deduziram, da ligação com o C, que ele deveria estar presente. É uma suposição, mas parece ser mesmo verdadeiro”, comenta o especialista em imunologia John Trowsdale, professor de patologia na Universidade de Cambridge. “Então isto é particularmente interessante do ponto de vista da imunologia.”
Ainda mais espantoso: a maioria dos alelos Neandertais e denisovanos eram idênticos aos alelos encontrados nos humanos hoje. “Quando comecei a analisar, era bem claro que estávamos encontrando alelos que estão presentes nos humanos modernos. E foi então que percebemos que era bem mais do que só o B*73”, diz Abi-Rached. Os alelos eram comuns na Europa e na Ásia, mas raros na África, o que sugere que eles foram introduzidos na população humana quando ela saiu do continente africano, e não simplesmente herdados de um ancestral comum. “A frequência nas populações modernas era particularmente inesperada”, conta Abi-Rached.
Por exemplo: de 50% a 60% dos alelos HLA-A encontrados em algumas populações na China e na Papua Nova Guiné são Neandertal HLA-A*11. Tudo somado, o grupo de Parham estima que 50% dos alelos HLA-A presentes nos europeus, até 80% nos asiáticos e até 95% nos nativos da Papua Nova Guiné têm origem arcaica. “Isto demonstra que os genes que mais provavelmente foram herdados dos humanos arcaicos foram bem úteis e se espalharam por toda a população humana”, conclui Trowsdale. “É extremamente difícil apresentar uma prova concreta disso, porque estamos falando de apenas quatro indivíduos arcaicos. Mas eu acredito que estas são hipóteses interessantes e atraentes no momento, e elas são compatíveis com as informações que nós temos.”
Genes imunitários
Os alelos podem ter proporcionado várias vantagens para a sobrevivência. Quando humanos modernos saíram da África, eles enfrentaram uma rigorosa seleção genética, com pequenos grupos originando novas populações na Europa e na Ásia. A reprodução interespécies ajudou a restaurar a diversidade do HLA, explica Abi-Rached. Neandertais e denisovanos saíram da África 200 mil anos antes dos humanos modernos, portanto seus genes imunitários estariam mais bem adaptados aos agentes patogênicos locais. “Claro que os humanos modernos poderiam ter se adaptado com o passar do tempo”, diz Abi-Rached. “Mas adquirir os alelos já prontos era um atalho”.
“Muitas das proteínas do HLA arcaico também têm propriedades peculiares que podem ter concedido benefícios evolucionários”, afirma Abi-Rached. Muitas delas se ligam fortemente a células exterminadoras naturais. Estas células são importantes para a imunidade inata — a primeira defesa do corpo contra infecções.
Proteínas neandertais (ou denisovanas) continuam vivendo e agindo dentro de nós, e isto também pode ter um lado negativo, observa Parham. Os neandertais evoluíram separados de nós por algumas centenas de milhares de anos, logo suas proteínas podem ser de alguma forma incompatíveis com nossos sistemas imunológicos e poderiam ter alguma relação com a ocorrência de doenças autoimunes. A autoimunidade é uma condição pouco compreendida, mas sabe-se que ela está relacionada a tipos de HLA. “Esta é uma especulação. Mas se ficamos separados por todo este tempo, seria bem impressionante se não houvesse diferenças”, acredita Parham. “Isto solucionaria um enigma duradouro.”
Tradução por Carolina de Assis
* Texto publicado originalmente na revista impressa de ex-alunos da universidade Stanford Magazine
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