As forças que planejaram o golpe militar contra o presidente João Goulart, que completa 51 anos nesta semana, previam a realização de um conflito armado no Brasil. Meses antes de abril de 1964, os conspiradores já se preparavam para enfrentar uma resistência de Goulart e seus aliados. O plano para derrubar o governo contava até mesmo com a possibilidade de indústrias e empresas alterarem a sua produção cotidiana para fabricar artefatos bélicos, como metralhadoras, cartuchos e carros de combate.
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Exatamente um mês após o sucesso do golpe de Estado, o projeto de “mobilização industrial” foi oficializado a partir da criação de uma nova diretoria dentro da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo): o GPMI (Grupo Permanente de Mobilização Industrial).
Apesar de o confronto contra Goulart não ter saído do papel, os industriais que haviam se articulado para o golpe permaneceram atuando de forma conjunta e próximos dos militares. Essa atuação permitiu a mudança de uma série de práticas do Estado brasileiro – licitações para equipar as Forças Armadas, por exemplo, passariam a ser realizadas em São Paulo, e não mais no Rio de Janeiro.
Vários diretores e assessores de alto gabarito de empresas integrantes do GPMI seriam conduzidos a importantes cargos do novo governo, e os gastos das Forças Armadas com equipamentos industriais cresceria significativamente nos anos que se seguiram a 1964.
Esse grupo deve ser considerado o berço da indústria bélica brasileira, reafirmou em entrevista o economista Jean-Claude Eduardo Silberfeld [na foto, à direita], que estudou a história do GPMI em dissertação de mestrado, defendida na PUC-SP em 1984, intitulada: “O Grupo Permanente de Mobilização Industrial da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo: 1964-1967”.
“O GPMI é o embrião da indústria bélica nacional, pois ajudou a desenvolver empresas como a Embraer e a Engesa, além do CTA (Centro Técnico Aeroespacial). No contexto da Guerra Fria do final da década de 1960, podemos perceber a influência norte-americana não só no CTA, mas também no ITA (Instituto Tecnológico de Aeronáutica)”, afirma Silberfeld, atualmente responsável pelo setor de relações institucionais da FecomercioSP (Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo).
Além dos aviões da Embraer, que segue na ativa até hoje, a produção bélica do Brasil nos anos da ditadura militar (1964-1985) ficou marcada pelas exportações da Engesa, suprindo, especialmente, as necessidades de países do Oriente Médio na década de 1980. A companhia particular, que recebia incentivos e investimentos do Estado brasileiro, vendeu veículos blindados, canhões e alguns tipos de munição para mais de 30 países, totalizando US$ 3 bilhões.
A dissertação de Silberfeld foi feita com base nas atas das reuniões do GPMI. “Fui estagiário na Fiesp, então decidi estudar algo que eu tinha acesso fácil. À documentação da Fiesp eu tinha acesso”, afirma. Hoje, porém, estão perdidas as atas, que mostram o envolvimento e o financiamento de diversas empresas à adaptação do parque industrial à produção de equipamentos bélicos.
A Fiesp afirma que a documentação foi doada à Unicamp. A reportagem da Revista Samuel, no entanto, foi até Campinas e também não encontrou o material. Procurada para fornecer maiores esclarecimentos sobre atuação do GPMI, a Fiesp diz que a sua “atuação tem se pautado pela defesa da democracia e do Estado de Direito, e pelo desenvolvimento do Brasil. Eventos do passado que contrariem esses princípios podem e devem ser apurados”.
A dissertação de Silberfeld, que traz a lista de empresas que contribuíram para arcar com os gastos da mobilização de 31 de março, sem, contudo, detalhar os valores, tornou-se assim um documento essencial para entender a relação entre empresários e militares no início da Ditadura Militar.
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A diretoria do GPMI era obrigatoriamente composta por membros civis e militares. Um desses dirigentes era o general e ex-ministro Edmundo Macedo Soares e Silva, militar brasileiro que teve destacada passagem por algumas das maiores empresas do país, como Volkswagen, Mercedes Benz, Mesbla, Banco Mercantil de São Paulo e Light, conforme aponta o historiador e cientista político uruguaio René Armand Dreifuss em seu livro 1964: A conquista do Estado.
Apesar da proximidade entre os dois setores, Silberfeld diz não ter encontrado, em sua pesquisa, qualquer indício que mostrasse o financiamento privado da repressão política. “O empresariado brasileiro nunca foi adepto dos ideais de esquerda, mas nunca vi nada relacionado à ação política e de repressão. Não se discutia nas atas questões relacionadas a patrão e empregado”, argumenta.
Sobre a possível atuação do GPMI e de seus membros na posterior formação da Operação Bandeirante, a Comissão Nacional da Verdade, encerrada em dezembro de 2014, concluiu que há indícios de que exista “uma linha de continuidade, desde o golpe, na relação de empresários com a estrutura coercitiva do regime e a perpetração de graves violações dos direitos humanos”, salientando que se encontra, “na relação entre segmentos empresariais e as estruturas militares do Estado, uma das expressões mais significativas da participação civil no regime ditatorial”.
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Silberfeld também lembra que o GPMI serviu como uma espécie de reconciliação entre as Forças Armadas e o empresariado paulista. “O GPMI serviu para se ter novamente uma relação do empresariado paulista com as Forças Armadas. Porque posteriormente a 1932, a relação de São Paulo com o governo Getúlio Vargas e os sucessores não foi exatamente a melhor. Tanto é que São Paulo não tinha generais nessa época, não tinha diplomatas. É Nordeste e Rio de Janeiro. A guarnição da década de 60 ainda era predominantemente do Rio. O peso político de São Paulo não correspondia ao peso econômico na década de 50 e 60.”
Essa reconciliação, no entanto, ocorreu antes da deposição de Goulart, durante a conspiração, diferentemente do que a data de criação do GPMI, 30 de abril de 1964, sugere. Documentos obtidos pela reportagem da Revista Samuel mostram que a união entre o empresariado paulista e as Forças Armadas se deu com a interlocução não só da Fiesp, mas também do então governador de São Paulo, Ademar Pereira de Barros (1901-1969).
Orlando Brito/Opera Mundi
GPMI foi fundado como uma diretoria dentro da Fiesp um mês após o golpe que derrubou o presidente João Goulart
“Em princípios de 1963, um grupo de empresários de São Paulo, desejando prestar um trabalho visando a defesa dos nossos ideais democráticos e cristãos, articulou-se junto à Presidência da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, e em ligação com o então governador do Estado, oficiais Superiores do II Exército e o comandante da Força Pública do Estado de São Paulo, iniciou a preparação do que seria o movimento vitorioso de março de 1964 em São Paulo”, afirmou Quirino Grassi, um dos fundadores do GPMI, em palestra proferida na ESG (Escola Superior de Guerra), em 1972.
O documento ainda aponta que “empresários paulistas […] espontaneamente colaboraram para a consecução do movimento revolucionário que eclodiria em março de 1964”.
Outros estudos sobre o GPMI
A atuação do GPMI já foi analisada em outros trabalhos jornalísticos e historiográficos. O jornalista Antonio Carlos Fon, ex-militante da ALN (Ação Libertadora Nacional), por exemplo, revelou a importância do grupo ao classificá-lo como o “ponto de partida dos negócios entre o empresariado e a ditadura, após 64”.
Assista abaixo ao vídeo da entrevista com o jornalista e ex-militante da ALN Antonio Carlos Fon:
O relatório final da CNV não deixou de indicar a existência do GPMI, o que ficou reforçado em depoimento prestado por Paulo Egydio Martins, ex-governador de São Paulo (1975-1979) e membro da Comissão de Mobilização Industrial do Estado Maior Civil-Militar de São Paulo, uma espécie de “comitê revolucionário” pré-1964, também de acordo com o uruguaio Dreifuss.
“Articulados com oficiais do II Exército, sediado na capital paulista, os conspiradores precisaram […] recuperar suas condições operacionais, para o que foi fundamental, a participação dos empresários industriais do estado, que abasteceram a unidade militar com veículos, peças de reposição e equipamentos variados”, anotou a CNV. “Para isso, foi criado um grupo de trabalho industrial, no âmbito da Fiesp. Nosso grupo de mobilização industrial teve que se desdobrar para tornar o II Exército uma unidade móvel”, lembrou o ex-político, um dos responsáveis pela logística do plano contra Goulart em São Paulo.
Outro trecho do relatório da CNV também detalha a criação do GPMI: “Vitoriosa a operação golpista, no dia 30 de abril, formou-se oficialmente, no interior da Fiesp, o GPMI. É a própria entidade que explica: ‘Da conscientização operacional das Forças Armadas, aliada à adequação do momento político e ao apoio das organizações militares, sediadas no estado de São Paulo, e com o aval dos ministérios militares, assim como do Estado-Maior das Forças Armadas (EMFA), surgiu o GPMI da Fiesp. Esse tinha por incumbência servir de intermediário no relacionamento indústria-Forças Armadas, no esforço de alterar a indústria nacional, de que o preparo permanente da mobilização industrial é a única solução para o país estar adequadamente preparado para situações excepcionais’”.
Silberfeld, por sua vez, também lembra que entre as preocupações dos fundadores do GPMI estavam um possível conflito com a Argentina e a instabilidade no contexto da Guerra Fria. Na hipótese de guerra de fato, as dificuldades para a importação de material bélico estavam na raiz das adaptações a serem feitas no complexo industrial-militar brasileiro.
O relatório da CNV ainda cita uma palestra do presidente da Fiesp, de 1972, Theobaldo de Nigris, intitulado A industrialização, a Segurança Nacional e o GPMI da Fiesp. Essa fala ocorreu na Escola Superior de Guerra e está, atualmente, entre os documentos de acesso livre da biblioteca da instituição. De Nigris afirma na palestra que “toda mobilização militar tem que ser fundamentada na indústria civil, que suprirá as necessidades das Forças Armadas em condições de menores custos e de padrões da melhor qualidade”.