O Gama é desses que não desaparecem, não negam fogo. Nas horas mais impossíveis, eis que ele se faz presente, solidário e amigo. Com palavras, poucas, sempre de alento e apoio, nunca coloca senões ou perguntas e sim procura dar respostas.
Agora, lendo Vila Buarque, seu reencontro com a vida na pauliceia desvariada tão próxima e tão longe de todos nós, pelas lembranças e saudades, pela distância que seu gigantismo impõe, me dou conta como somos próximos e amigos. Eis que eu poderia ser um dos seus personagens, reais ou fictícios, perdidos na noite paulistana, em suas ruas, na Taguá, onde vivi e estudei, no Colégio Paulistano; na São Joaquim, em frente ao Roosevelt, onde estudavam meus primos; nas avenidas São João ou São Luís, onde eu antes como office boy e depois como estudante batia perna ou frequentava bares e restaurantes – como o Papai, com sua famosa feijoada às sextas de madrugada –, boates que eu não frequentei primeiro pela idade e depois pela impossibilidade, e casas de dança, como a de Portugal na avenida Liberdade, onde eu batia ponto sempre com meus primos que vivam na Rua Humaitá. Perdido também em bondes, que ainda andei ao chegar à cidade em 1961, e elétricos que usei e abusei para ir à faculdade na Monte Alegre, em Perdizes, trens e estações… Os trens, essa maravilha que povoou minha infância, nasci em Passa Quatro, Minas, no túnel da Mantiqueira, ligada a Cruzeiro e à Central do Brasil pela Rede Mineira de Viação, a RMV, “Ruim mas Vai”, numa família de ferroviários…
O que nos une é o passado de uma cidade maravilhosa, grande, imponente, de luzes e festa, os bairros da Liberdade e Vila Buarque, agora revividos junto com a história recente do país e, o mais importante com os homens e as mulheres que nela vivem e viveram e a fizeram como ela é: grande e pequena, em suas riquezas e desigualdades, luxo e miséria, em suas paisagens lindas e feias, em seu modo de vida, cosmopolita e provinciano, em seu caldeirão de raças, etnias, povos e línguas, culturas e religiões, um pedaço do mundo.
O que seria da cidade sem seus moradores? Gama nos traz todos eles, principalmente os sem voz e vez, os da rua e os da luta diária pela sobrevivência, e com eles relembra a cidade que foi sem perdão destruída pela voracidade imobiliária e por esses animais de aço e plástico, os carros, apesar das fracassadas tentativas de impor uma lógica simples e barata, então, o transporte coletivo. Como um cirurgião retalha a cidade esquecida, demolida e apagada, ele acorda para lembrar cada edifício histórico, praça, recanto, beleza que se foi pela mão do próprio paulistano ávido de poder e riqueza.
Como um filme tudo volta ao ler esse livro que mistura memória e história, os cinemas da Ipiranga, da São João, onde se podia sentar e tomar uma cerveja na calçada ou na rua entre a Ipiranga e São João, nos idos de 1961, 1962. Esqueceu o restaurante giratório no Largo do Paissandu, das ruas e avenidas, praças e recantos que trilhei como estudante lutando contra a Ditadura, antes como funcionário de escritórios, o que nos dava a vantagem, naquela época, de conhecer todo centro da cidade por dever de oficio, andar por toda cidade, comer em vários lugares… Isso me serviu e me salvou a vida na clandestinidade.
Quando cheguei a Sampa em 1961, só suas luzes e sua beleza me encantavam. A vida era dura, ir à pé ao colégio, comer e viver em pensões com dois salários mínimos, pagar a escola e o transporte, comprar livros… Enfim, sobreviver, guardando sempre algum para o cinema e o teatro, para os livros da Saraiva e do Clube do Livro, ler e sonhar. Liberdade, São Joaquim, Taguá: foi minha primeira morada, pensões e casa da tia, um pouco de lar e carinho, a vida era trabalho e estudo, diversão e alegria. A Praça da República era meu mundo e todo centro da cidade, foram anos duros e ao mesmo tempo de descobertas, como o dia que vi os alunos bem vividos, filhinhos de papai como se dizia, descendo a avenida Ipiranga vindo do Mackenzie em apoio ao Golpe de 1964 e decidi de que lado estava, e não parei de lutar.
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USP Imagens/Reprodução
Barricada em frente ao prédio da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras
Ou da primeira vez que, morando no parque D. Pedro, no edifício São Vito, demolido, em frente ao Mercado Municipal, subi a ladeira Porte Geral, passei pela Clovis Bevilácqua e saí na avenida Liberdade para chegar à Taguá no Colégio, maravilhado e encantado com a cidade. Nem me dava conta da distância, tal era o namoro com a cidade, melhor ainda pegar o bonde ou o elétrico, para um menino, eu mal tinha completado 14 anos, do interior de Minas. Apesar dos livros, era tudo o que se podia querer, eis a magia da cidade grande, e seu ilusionismo.
Quando relembra a Maria Antonia e a luta contra a Ditadura, o movimento estudantil de 1968, Gama me envolve e me confunde ao me tragar para dentro de suas memórias e lembranças: o Bar do Zé, o Grêmio da Filosofia, a Quitanda, a FAU, as passeatas, a UEE (União Estadual dos Estudantes), as ocupações das faculdades, a luta pela reforma universitária, a provocação da direita e da polícia desde o Mackenzie e a tomada e destruição da Faculdade, símbolo da rebeldia, criatividade, luta do movimento estudantil, luta contra a Ditadura, Ibiúna e nossa derrota, prisão e exilio.
São essas sensações que fazem este livro virar realidade e ter vida, mas Gama avança para nos trazer a alma, as dores e conflitos, dos paulistanos que conhecemos e convivemos naquelas décadas, o desassombro da ditadura e suas mazelas. Não deixa por menos e nos lembra da tortura e do que nos custou o regime militar, desnuda, tão atual, como nossa elite trata os pobres e os deserdados, os que se rebelam e clamam por justiça e igualdade. Devagar e com precisão, ele adentra em seus personagens que somos nós mesmos, dissecando sem piedade suas vidas.
Vai e vem e não escapa da cidade e das vidas vividas nela – as épocas e acontecimentos, Gama os descreve, filosofa, critica, acredita e desacredita na cidade e em seus moradores. Trata, portanto, da humanidade, pois onde poderíamos encontrar uma amostra mais perfeita do mundo do que em nossa pauliceia desvairada?
Agosto de 2017
* JOSÉ DIRCEU, ativista político e líder estudantil em 1968, é autor do livro Tempo de Planície (Alameda). O texto acima foi publicado como prefácio de Vila Buarque – o caldo da regressão. Texto publicado em Painel Acadêmico.
Livro: Vila Buarque – O caldo da regressão
Autor: Marcos Gama
Edição: Alameda (11 3012-2403)
Preço: R$ 65,00 (304 páginas)
ISBN: 9788579395161
Formato: 23×16 – Brochura