Grupos conservadores que vêm ganhando força na Venezuela escolheram um novo alvo de ataques: o programa de educação sexual nas escolas do país. De tendências cristãs e autodenominados “defensores da família”, as organizações alegam que o projeto desrespeita “os princípios e valores familiares” e espalha uma suposta “ideologia de gênero” entre os alunos.
Pesquisadoras e ativistas de direitos humanos venezuelanas ouvidas pelo Brasil de Fato veem com preocupação a ação desses grupos que podem trazer retrocessos e riscos para crianças e adolescentes.
“A educação sexual é um elemento de proteção”, afirma Suzany González, coordenadora do Centro de Estados de Direitos Sexuais e Reprodutivos (Cedesex). “O programa serve para proteger em temas específicos como gravidez na adolescência e abuso sexual infantil, mas também é um componente necessário para o desenvolvimento humano e para a construção de uma sociedade mais justa, equitativa e, sobretudo, livre de violências baseadas em gênero”, diz.
A pesquisadora explica que conteúdos sobre prevenção contra abusos e doenças sexualmente transmissíveis foram inicialmente introduzias no sistema básico de ensino no ano de 2005, “mas de maneira muito tímida e embrionária”. Foi no ano de 2018 que o Ministério da Educação, em parceria com o Fundo de População da ONU, elaborou um documento fruto de estudos científicos que determinou linhas pedagógicas e cronogramas de longo prazo para a educação sexual.
As Orientações Pedagógicas para a Educação Integral da Sexualidade (EIS) estabeleceram as bases para um programa curricular voltado para alunos e educadores, cujo principal objetivo é promover o pensamento crítico sobre temas como sexo, gênero e diversidade.
Atualmente, o documento é a referência máxima para o programa de EIS nas escolas do país, principalmente após a sua incorporação ao sistema básico de ensino ser publicada em Gazeta Oficial no ano de 2021. No entanto, há obstáculos em sua aplicação, que vão desde dificuldades financeiras causadas pela crise econômica até resistência cultural por parte de educadores. Essa é a opinião de Mercedes Muñoz, diretora da Associação Venezuela para uma Educação Sexual Alternativa (AVESA).
“A Venezuela tem normas e leis bem amplas sobre esses temas, mas precisamos reduzir a brecha entre o que está escrito e o que se aplica no cotidiano”, diz. Para Muñoz, a EIS deveria ser objetivo de maior investimento “como parte de uma política pública para capacitar os profissionais”.
Ataques
Mesmo com as dificuldades enfrentadas pelo programa de educação sexual, os grupos conservadores pedem sua erradicação das escolas. Em julho, representantes de uma dessas ONGs chamada Iniciativa pela Família Venezuelana chegaram a realizar um protesto em frente ao Ministério da Educação e entregaram um documento pedindo o fim do projeto no ensino básico.
De acordo com a cópia do texto publicada nas redes sociais do grupo, a EIS não tem “sustentação científica ou legal”, “propõe como opção determinados delitos como o aborto” e apresenta “modelos de família não apegados ao modelo constitucional de pai, mãe e filhos”. Além disso, o documento insinua que o programa de educação sexual estaria incentivando a masturbação, a pedofilia e uma suposta “ideologia de gênero”.
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Mesmo com as dificuldades enfrentadas pelo programa de educação sexual, os grupos conservadores pedem sua erradicação das escolas.
“Nada mais longe da verdade”, explica González. “Se vamos falar de ideologia, então temos que falar da ideologia patriarcal, que utiliza as diferenças sexuais entre os seres humanos para nos categorizar e nos hierarquizar. Não existe algo chamado 'ideologia de gênero', não há ninguém querendo 'ideologizar', o que existe são estudos científicos, antropológicos, filosóficos, sociológicos, até biológicos que demonstram que existem desigualdades de gênero que não têm nada a ver com nossas diferenças biológicas”, aponta.
As exigências dos grupos vão além da erradicação da EIS das escolas. Eles ainda pedem a substituição do atual currículo por um programa chamado “Aprendendo a Querer”, um material didático completo que é composto por dezenas de livros que começam com crianças em idade pré-escolar e vão até adolescentes de 17 anos. A iniciativa surgiu em 1999 pensando, segundo os próprios organizadores, em uma maneira de “entrar no campo da educação sexual e da educação com valores”.
No entanto, por trás do “Aprendendo a Querer”, está uma rede de organizações cristãs e defensoras de ideias ultraconservadoras como, por exemplo, um grupo venezuelano chamado Provive. A organização foi fundada em 1981 como uma resposta de entidades religiosas ao debate sobre a legalização do aborto na Venezuela e diz atuar na “área da educação e proteção à criança e ao adolescente”.
A Provive é presidida por Christine de Vollmer que, inclusive, é uma das autoras dos livros da coleção “Aprendendo a Querer”. A ativista é casada com Alberto Vollmer, dono de uma das maiores empresas de bebidas alcoólicas da Venezuela, a Rum Santa Teresa. Além disso, a família Vollmer é proprietária do Banco Mercentil, uma das mais poderosas entidades financeiras privadas do país. Tanto o Banco Mercantil quanto o Rum Santa Teresa financiam, através de suas entidades filantrópicas, a Provive e o “Aprendendo a Querer”.
“Uma pessoa que, supostamente, quer proteger os direitos das crianças não fica milionária vendendo álcool ou especulando no sistema financeiro com um banco”, argumenta Suzany González. Para a ativista, há muitos interesses econômicos e políticos na atuação desses grupos pelo fim da EIS nas escolas e isso poderia explicar o mais recente impulso que esses grupos ganharam na Venezuela, ainda mais por se tratar de um período eleitoral, já que o país deve realizar eleições presidenciais no próximo ano.
No mesmo mês em que grupos conservadores foram protestar contra a EIS no Ministério da Educação, setores evangélicos realizaram uma marcha na capital cuja pauta central era o fim de um projeto de lei contra a discriminação que tramita no Parlamento venezuelano. Os conservadores alegam que o PL poderia atacar “o modelo original da família”.
“Quando entramos em campanha eleitoral, esses temas voltam a ganhar força, porque há uma intenção de aplicar uma agenda política com envolvimento de partidos altamente conservadores e, até mesmo, em alguns casos, de figuras ligadas ao partido governista”, diz González.
Um exemplo da relação entre esses grupos conservadores e políticos venezuelanos de diversos espectros ideológicos foi o encontro dos “Legisladores pela Vida”, organizado pela Iniciativa Pela Família Venezuelana que contou com a presença de vereadores e deputados estaduais de partidos da oposição e da base do governo.
No entanto, a pesquisadora Mercedes Muñoz afirma que a defesa contra esses grupos deve ser feita com a proteção da lei e da Constituição, que garantem direitos básicos e fundamentais a crianças e adolescentes.
“Os direitos sexuais e reprodutivos como um direito humano estão expressados em nossas leis e não apenas em documentos curriculares. O artigo 76 da Constituição consagra o direito à planificação familiar, a poder escolher o número de filhos que queremos ter, e a lei de proteção à criança e ao adolescente considera que a educação sexual é um direito”, afirma.
Segundo dados da ONU, a Venezuela tem a maior taxa de fecundidade adolescente da América Latina, com 96 nascidos vivos a cada 1.000 mulheres entre 15 e 19 anos. Para pesquisadoras, a proibição do aborto no país e as dificuldades em se obter métodos contraceptivos por conta da crise e do bloqueio dos EUA fazem com que a aplicação da EIS e o enfrentamento às atividades de grupos conservadores sejam ainda mais urgentes.
“É urgente e necessário que apliquemos esses componentes da educação sexual, não apenas para o tema de gravidez indesejada na adolescência e abusos sexuais, o que já está mais do que comprovado que a EIS ajuda a prevenir, mas também pensando a longo prazo para o desenvolvimento de uma sociedade mais justa”, afirma González.