Texto publicado originalmente no jornal O Estado de S.Paulo em 23 de maio de 2003.
Com uma extensão de mais de 900 km, o Rio Paranapanema divide, em boa parte deles, os Estados de São Paulo e do Paraná. No início da colonização, separava dois mundos: a América portuguesa da América espanhola, configurando um “limite natural” para os tratados que dividiram o mundo nos séculos 15 e 16. Nas suas margens, passava o Peabiru, caminho indígena que cruzava a América do Sul.
Nos meses de julho e setembro de 2002, os jornalistas Paulo Zocchi e Marcelo Maragni percorreram todo o rio, de suas insondáveis nascentes à foz, quando suas águas barrentas se juntam com as do bem mais caudaloso Rio Paraná (ou “Paranazão”, como dizem os moradores do Pontal do Paranapanema).
A viagem resultou no livro Rio Paranapanema — Da Nascente à Foz (Horizonte Geográfico), com textos de Zocchi e fotos de Maragni. A obra foi bancada com recursos da Lei de Incentivo à Cultura e patrocínio da Duke Energy, a empresa que tem a concessão pública de exploração de oito das usinas hidrelétricas do rio.
Durante a pesquisa para a realização do trabalho, Zocchi deparou-se com um dos raros estudos sobre o rio, resultado de uma expedição comandada pelo geógrafo Teodoro Sampaio em 1886, pela Comissão Geográfica e Geológica de São Paulo. Sugeriu, então, que a obra fosse reeditada, em versão fac-similar.
A nova edição de Exploração dos Rios Itapetininga e Paranapanema, feita a partir de um exemplar bastante bem conservado, traz uma apresentação do geólogo José Carlos Barreto de Santana. Nos dois projetos, foram investidos cerca de R$ 400 mil.
“Ao longo do rio, há vestígios de povoamentos humanos que remontam a 8.000 anos”, afirma Zocchi. “Os índios guaranis só chegaram à região há cerca de 2.000 anos”, complementa.
Com a chegada dos guaranis, os caçadores-coletores nômades, chamados de umbus pelos arqueólogos, desapareceram — teriam sido absorvidos, exterminados ou postos em fuga.
“Até 1875, quando praticamente toda a rede hidrográfica do país já havia sido mapeada, no oeste paulista, um atlas registrava a área como ‘terrenos desconhecidos habitados por indígenas’”, diz Zocchi. O rio, no entanto, tem uma vasta história ainda pouco contada.
No século 17, os bandeirantes destruíram missões jesuítas situadas à sua margem, expandindo o território sob domínio português. No início do século 18, em seus primeiros quilômetros, viveu-se um breve ciclo do ouro — uma das imagens mais interessantes do livro é uma foto de um “encanado” em Ribeirão Velho, desvio do rio para que seu leito pudesse ser explorado, por onde ainda hoje corre o Paranapanema.
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Rio Paranapanema divide, em boa parte deles, os Estados de São Paulo e do Paraná
Também nessa época, os tropeiros, que traziam gado do Rio Grande do Sul, estabeleceram rotas que passavam pelo rio. Em meados do século 19, há a grilagem das terras do Pontal, ainda hoje motivo de violenta disputa fundiária.
No século 20, além da expansão cafeeira, um dos fatos que mais marcaram a vida dos moradores foi a Revolução de 1932, por conta dos embates entre paulistas e gaúchos. Zocchi entrevistou moradores da região que assistiram a combates, quando criança. Um deles, José Ribeiro da Silva, de Campina, lembrou: “numa manhã, minha irmã estava tirando leite e vimos a gauchada vindo. O pessoal da fazenda levou as 60 vacas leiteiras para um lugar isolado e continuou a ordenha. Às 9h, quando eles chegaram, tinha-se tirado 14 latas de 18 litros. Os soldados beberam tudo.”
Outro entrevistado, Carmo Gomes, conta: “tanto os paulistas quanto os gaúchos mataram porcos e gado. O que meu pai mais sentiu foi que levaram o laço de couro de veado. Era macio, coisa muito especial.”
A ocupação do Vale do Paranapanema resultou, também, numa enorme matança de índios que ocupavam a região. Zocchi afirma que, durante a viagem, encontrou vários homens e mulheres que tinham ascendência indígena Em geral, eles se lembravam de uma avó — porque a ordem era matar os homens e preservar as mulheres.
O livro também trata da pesca e do meio ambiente ao longo do rio, bastante modificado pela instalação das hidrelétricas no século 20, mas pouco atingido pela poluição. Entre os animais que vivem em áreas de proteção ambiental ao longo do rio estão os primatas mico-leão-preto, próximo à foz, e o mono carvoeiro, nas nascentes.
Sobre a origem de seu nome, há dúvidas: paraná significa, em tupi, rio, e panema “faz o papel de um sufixo negativo, algo com o significado aproximado de ‘imprestável’ ou ‘sem valor’”. Mas por que o Paranapanema não teria valor? “Para uns, é a pouca navegabilidade — mas os índios se locomoviam sobretudo pelo chão, contestam outros. Uma hipótese é a pouca quantidade de peixes em relação ao Paraná ou Tietê. Mas os índios iriam comparar assim rios distantes? Para o antropólogo José Luiz de Morais, o sufixo provavelmente se refere à disseminação da malária em suas margens”, escreve Zocchi.