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Os acontecimentos que agitaram a Tunísia entre o fim de 2010 e o início de 2011 criaram uma grande onda de esperança e fizeram escola em todo o mundo árabe.
Um ano antes da queda do ex-presidente Zine el Abidine Ben e seu clã do poder, ninguém teria acreditado que um cenário como aquele poderia ser produzido – ainda que tenham aparecido muitos indícios de que as características estruturais para que ocorresse uma sublevação a curto prazo pudessem estar reunidas, como foi relatado em documentos diplomáticos norte-americanos vazados pelo Wikileaks em 28 de novembro de 2010, os quais descreviam o governo do país norte-africano como uma espécie de máfia.
[foto à esquerda do Ministério dos Portos e Marinha mercante antes da queda do ditador Ben Ali]
Mesmo para os cidadãos tunisianos residentes no exterior, a maior parte deles na França, era impossível falar de Ben Ali e seus aliados pelo medo de sofrerem represálias.
No entanto, em 14 de janeiro de 2011, o presidente fugiu do país. O regime ditatorial caiu um mês após a autoimolação do vendedor ambulante Mohamed Bouazizi na cidade de Sidi Bouzid (centro do país), fato que tornou este cidadão herói póstumo de todo um povo. Nessa revolta popular, os jovens tiveram um papel determinante através do uso de novas tecnologias, pois souberam divulgar as reivindicações de diversos setores da sociedade civil.
Os objetivos dos tunisianos envolvidos nos protestos estavam claramente determinados. Ao contrário da “Revolução de Jasmin”, nome dado às manifestações pelas agências de notícias ocidentais (fazendo referências ás revoluções “coloridas” ocorridas nas ex-repúblicas soviéticas), os tunisianos preferem se referir a elas como “Revolução da Liberdade e da Dignidade” (Thawrat al hurriya wa-l karâma, em árabe). Portanto, a revolta tunisiana foi essencialmente carregada pelo povo nas ruas.
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Barricadas na Tunísia pedindo o fim do regime ditatorial de Ben Ali
Os organizadores dos protestos eram, em sua maioria, defensores dos direitos humanos, políticos alijados do sistema, blogueiros engajados, feministas, professores universitários, estudantes, deserdados, desempregados e trabalhadores precarizados; não se notava a presença dos religiosos, ainda menos os islamistas.
Durante as manifestações não foi entoado um único slogan islâmico, antes ou durante a partida de Ben Ali. Ao se revoltarem, os tunisianos entraram com força no cenário político.
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Só depois que, melhor organizados do que outras correntes, os religiosos souberam capitalizar politicamente o movimento popular e chegar ao poder na fase seguinte à Revolução. Eles utilizavam uma lógica superficial com uma base frágil – porém bem estruturada em uma estratégia eleitoral muito bem elaborada, mas sem o consentimento profundo da população.
Se as manifestações foram um bom início, o país viveu, no entanto, à sombra da insegurança e dos distúrbios durante muitas semanas, até meses; nenhuma união nacional foi alcançada em torno de líderes incontestes ou de figuras carismáticas. Mas a expressão direta das aspirações de cada cidadão, após décadas de silêncio generalizado, permitiu que fossem liberadas frustrações psicossociais acumuladas por anos de ditadura política.
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Centro de votação de Sousse, na Tunísia, em outubro de 2011
Ainda sob o ponto de vista político, a organização das eleições em outubro de 2011 viu os islamistas do Ennahda saírem como vencedores. O partido religioso obteve 90 dos 217 assentos disponíveis no Parlamento, à frente do Congresso pela República (social-democracia) e do Ettakatol (Fórum Democrático pelo Trabalho e das Liberdades, centro -esquerda). Esses três partidos, que constituem uma “troika”, têm interesse em que a situação do país não se agrave para tentar manter o pouco do crédito e da confiança que ainda possuem da população. È da responsabilidade deles assegurar a transição para uma democracia e dar fim definitivo às práticas do antigo regime.
A transição é lenta demais?
No entanto, essa fase de transição ainda não acabou é já começa a ser questionada por uma parcela da população – muitos começaram a dizer que sentem saudades da era Ben Ali. A segurança pública precária e os problemas sociais encorajam esse tipo de reação. O assassinato de dois líderes políticos, Chukri Bel Aid e Mohamed Brahimi, além das tensões políticas, marcadas por manifestações pró-islâmicas e anti-Ennahda, só pioraram o cenário.
Além disso, a presença de extremistas salafistas, não só na cidades, mas sobretudo nas montanhas do Chaambi, próxima à fronteira com a Argélia, provoca o temor de que se inicie uma guerra civil como ocorreu com o país vizinho nos anos 1990. O local é palco de operações militares desde o assassinato de oito militares em 29 de julho deste ano. Poderíamos dizer que existe um interesse em derrubar o difícil processo democrático que está em curso?
Os salafistas radicais, fanáticos, têm a intenção de criar um estado islâmico. Já o Ennahda teve o mérito de reagrupar, de maneira institucional, o setor conservador da sociedade tunisiana. Como consequência, os salafistas tentam provocar o governo através de manifestações e atos de violência, um trabalho de campo que aposta no fervor religioso como base ideológica, para tomar o poder através das mesquitas.
Os antigos aliados de Ben Ali, membros do ex-governista RCD (Reunião Constitucional Democrática) querem, por sua vez, mostrar que a transição não funciona. Eles ainda controlam parte do aparato policial e administrativo tunisiano, fazem o jogo do “quanto pior melhor” e não hesitam em provocar agitações com rumores e falsas informações.
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Do exterior, a Arábia Saudita comanda hoje um jogo perigoso, mesmo considerando que seja impossível de provar sua responsabilidade direta nos distúrbios na Tunísia. Mas foi este o país que ofereceu refúgio a Ben Ali, e que não deseja que democracias se estabeleçam nos países árabes, ainda por cima se ocorrerem através de revoltas populares. Em seguida ao golpe de Estado contra Mursi no Egito, os sauditas prometeram injetar bilhões de dólares na economia daquele país. A Arábia Saudita é um dos principais bastiões dos movimentos mais radicais do islã (o wahabismo e o salafismo) e faz atualmente ferrenha oposição à Irmandade Muçulmana.
A primeira democracia árabe?
Uma vez que estão potencialmente identificados os responsáveis pelas dificuldades atuais da Tunísia, convém dizer que o governo e a Assembleia Constituinte não conseguem construir uma agenda com o objetivo de elaborar uma nova Constituição nem realizar eleições legislativas.
Seus integrantes têm quatro desafios importantes: retomar o crescimento econômico, estabilizar a segurança em todas as regiões do país, construir um quadro institucional robusto e lutar contra o flagelo da corrupção.
Nesse contexto, a oposição não se encontra estruturada. Pois mesmo quando suas críticas são compreendidas pela população, ela não oferece alternativas reais para os partidos da “troika”.
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Por fim, embora possamos afirmar que o Facebook e os blogs tiveram utilidade efetiva durante a Primavera Árabe, hoje eles são instrumento do pior tipo de propaganda acusatória. Logo após os dois assassinatos políticos, alguns analistas acusaram os islamistas do Ennahda sem qualquer prova e não dando tempo aos investigadores para que fizessem seu trabalho. A falta da imprensa e de jornalistas investigativos deixa o terreno livre para uma série de especulações. No calor da emoção e do Twitter, as consequências podem vir a ser dramáticas para a construção democrática. Enquanto que, no Egito, o exército interrompeu o processo democrático, na Tunísia, as Forças Armadas permanecem afastadas do cenário político e se atém a combater um punhado de grupos terroristas.
[Imagem publicitária que circulou durante Revolução Tunisiana de 2011]
A Tunísia, apesar das dificuldades aqui levantadas, está a caminho de construir um longo, embora duradouro, caminho em direção a uma democracia árabe. Para tanto, será necessário que os islamistas do Ennahda aceitem plenamente o jogo democrático.
A vantagem deste pequeno país é que ele não representa uma posição-chave no jogo geopolítico. Possui poucos recursos energéticos e Israel está longe de seu território. Para dar certo, o processo que funcionou na América Latina, no Mediterrâneo europeu e no Leste Europeu deve aperfeiçoar-se no trabalho institucional que está em curso e que dará um horizonte ao povo tunisiano. Além disso, a classe política precisa mostrar-se digna da responsabilidade e de maturidade, evitando armadilhas emocionais, jogos de insultos e mostrando da unidade frente às forças antidemocráticas.
El Yamine Soum é um sociólogo franco-argelino, especialista em temas como imigração e diversidade. Co-autor de livros como “La France que nous voulons”, “Islamophobie au Monde Moderne” e “Discriminer pour miex régner”.