Autor do livro recém-lançado Crítica do Fascismo (ed. Boitempo), o filósofo e jurista Alysson Mascaro avalia que não há hipótese de o bolsonarismo ser extirpado somente pela vitória eleitoral de Luiz Inácio Lula da Silva no último domingo (30/10), e que o fenômeno de extrema direita pode reencarnar de forma até mais forte na ausência do ministro Paulo Guedes ou mesmo do próprio Jair Bolsonaro. “Se cai a figura de Bolsonaro, o neoliberalismo pode encontrar uma figura melhor. Se vem alguém menos violento que Paulo Guedes, o neoliberalismo ganha mais 20 ou 30 anos de domínio no país”, considera, em entrevista ao jornalista Breno Altman, no programa 20 MINUTOS desta quarta-feira (02/11).
“Imagine se algumas das figuras do bolsonarismo resolve abrir estradas e fazer pontes. Este que será governador do estado de São Paulo é capaz de abrir uma estrada, coisa que Bolsonaro não fez, porque Guedes não deixava”, exemplifica o professor de direito da Universidade de São Paulo (USP). “Se qualquer outra forma neoliberal entrega resultados, o fenômeno pode voltar muito mais intenso e sem as excrescências de xingamentos e palavrões dessa figura que por aí está”.
Mascaro conjetura o que pode acontecer se o que chama de “guedismo” pular no barco da esquerda liberal e da direita liberal que compõem a frente ampla vitoriosa na eleição presidencial, forçando o novo governo Lula a tomar uma forma alternativa de neoliberalismo: “É uma hipótese residual, mas não se pode descartar de todo que o bolsonarismo faça um tal volteio que encarne uma fala direta com as massas pobres e miseráveis. Quem aperta é o governo de esquerda, e quem solta uma fantasia nunca entregue passa a ser a direita”. Ele lembra, por exemplo, que, nas origens, Jair Bolsonaro se manifestava contra as privatizações. “Nesse caso, a tocha do neoliberalismo e da privatização ficaria na mão do PT, consorciado com PSDB e MDB”.
Em argumentação em seu novo livro, o filósofo atribui à inexistência de uma esquerda revolucionária no Brasil os repetidos ciclos de direita, extrema direita e flerte com o fascismo. “Quando viu Michel Temer dar um golpe com Eduardo Cunha e outros mais, essa esquerda tinha medo do que a Globo e a Veja iam pensar se ela usasse a caneta para romper com a situação. O que faz a escalada da extrema direita é uma esquerda não revolucionária, que fica como barata tonta albergada nas instituições democráticas”, argumenta.
Mascaro afirma que eventualmente o avanço fascista pode ser contido por via institucional, como parece ser o caso brasileiro com a vitória de Lula: “Até pode acontecer que uma esquerda reformista democrática consiga tapar parcialmente uma escalada de extrema direita, mas daqui a pouco isso volta de outra maneira, ou na mesma”. De forma geral, no entanto, a esquerda não-revolucionária, que desistiu de se lançar contra a hegemonia capitalista, tende a se acovardar diante do avanço extremista. “Seremos sempre atravessados por flechas de extrema direita ou quiçá fascistas se a esquerda não tiver coragem revolucionária de romper com o quadro do capital e avançar para além”, adverte.
Facebook/Alysson Mascaro
Filósofo e jurista Alysson Mascaro é convidado de Breno Altman no 20 MINUTOS desta terça-feira (02/11)
À luz do pensamento marxista, o filósofo compreende o fascismo como uma das margens constituintes do capitalismo, que portanto não será extirpado enquanto o próprio capitalismo não for enfrentado em sua dinâmica de exploração concorrencial instalada entre a burguesia, os setores médios e a classe trabalhadora. “Quem não pode falar contra o capitalismo não fale contra o fascismo”, sintetiza, recorrendo ao pensamento do filósofo alemão Max Horkheimer.
Quanto ao Brasil bolsonarista, Mascaro apoia-se no filósofo grego Nicos Poulantzas para afirmar que o país pode alcançar o fascismo, mas ainda não o alcançou nos quatro anos sob Bolsonaro. Um dos elementos caracterizadores do fascismo, que está ausente no Brasil de hoje ou de momentos anteriores, é a escalada imperialista das burguesias na concorrência internacional e interna. Na última década, a burguesia brasileira radicalizou seu regime de acumulação, recolhendo até mesmo direitos básicos como a CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) varguista ou o aumento do salário mínimo para a classe trabalhadora. O ataque, entretanto, não serviu como trampolim para uma inserção internacional imperialista. “Nossa burguesia não precisou se armar ou se blindar para competir com a Argentina ou os Estados Unidos. Muito pelo contrário, ela é refém, uma burguesia de fancaria, subordinada à estadunidense”, explica.
Segundo o professor, se um país consegue derrubar a extrema direita por conta própria é sinal de que o extremismo não controlou totalmente a sociedade, a ponto de sufocá-la, como aconteceu na Itália fascista e na Alemanha nazista. “Se em 1985 a própria burguesia de 1964 dá a mão a certos setores da classe trabalhadora, isso é uma prova de que o Brasil não chegou ao ponto em que não conseguia mais romper com o quadro de fascistização”.
Na busca de interpretar os significados do bolsonarismo, Mascaro define-o como um fenômeno de extrema direita que se aproveita de interesses econômicos da burguesia e, na mesma intensidade, de uma condição de reprodução ideológica automática das classes sociais brasileiras. “Há 50 anos não há ruptura, e PMDB, PSDB, PT, PDT, PSB, PSOL e todas as adjacências de esquerda não ensinaram à classe trabalhadora que existe luta de classes. Tudo que se chame de esquerda e centro no Brasil aposta na ideologia do capital, no consumo, em picanha e cerveja para todo mundo”, critica.
Movendo-se pela mesma ideologia do capital, a esquerda se torna presa fácil para a direita e para burguesia, que por sua vez opera tanto com o petismo quanto com o bolsonarismo, sempre em busca do maior lucro possível. “Se já desmatou a Amazônia o suficiente para enriquecer certas frações por três gerações, agora vamos tentar resgatar a Amazônica. Sai Ricardo Salles, entra Marina Silva. Os dois são movimentos do capital, a Natura e o mercado financeiro apostam em ambos”.
Alysson Mascaro procura uma síntese entre Poulantzas e Horkheimer para entender o que se passou e interpretar os desafios postos à frente: “Não podemos a todo momento falar que qualquer coisa é fascista, porque nos faltarão argumentos quando o fascismo chegar. Mas não adianta passar mais um século amarrando pontas e dizendo que ainda não é fascismo e que vamos lutar nas instituições”. A causa precipitadora do fascismo é o capitalismo, conclui, e as soluções reformistas equivalem a enxugar gelo até o próximo ciclo. “Definitivamente, temos que romper com essa amarra ideológica liberal, não imaginar que as instituições salvam e que o povo deve tomar o poder. Sem isso, passaremos um segundo século fascista”, sugere.