No programa 20 MINUTOS ANÁLISE desta terça-feira (12/04), busquei responder por que a extrema direita cresce na Europa tendo em vista a passagem de Marine Le Pen ao segundo turno das eleições presidenciais francesas.
Líder do partido Reagrupamento Nacional, antiga Frente Nacional, a candidata da extrema direita representa a chance concreta da ascensão ao governo, em uma das principais sociedades capitalistas da Europa, de uma força política estranha aos partidos da democracia liberal do pós-guerra.
Le Pen representa o crescimento de uma corrente minoritária da política burguesa desde a derrota do nazifascismo nos campos de batalha. Essa extrema-direita, embora marginalizada, nunca deixou de existir. A partir dos anos 90, no entanto, de forma desigual e irregular, veio conquistando certo protagonismo em toda a Europa.
O neofascismo, como muitos identificam esse heterogêneo condomínio de direita, se aproximaria do palco principal da política, portanto, quando o socialismo abandonava a cena e desapareciam, como alternativas viáveis de poder, os partidos da esquerda anticapitalista.
Origem
O ocidente europeu, desde o final da Segunda Guerra Mundial, foi liderado por partidos que defendiam a democracia liberal e a economia de mercado, todos eles integrados plenamente ao sistema imperialista fundado em 1945 sob a liderança dos Estados Unidos e a bandeira do anticomunismo.
Dividiam-se, grosso modo, em dois braços de um mesmo corpo. A ala direita do sistema era representada pelos partidos conservadores, católicos e liberais. A ala esquerda, pela social-democracia. Os dois ramos revezavam-se no comando dos Estados nacionais, às vezes formando coalizões entre si.
Ambas alas aderiram ao programa neoliberal nos anos 80, expressando os interesses da burguesia europeia no relançamento da economia capitalista depois das crises mundiais de 1973, 1982 e 1987.
Os ritmos de adesão foram variados, é verdade. A direita converteu-se mais rapidamente ao novo credo, os sociais-democratas foram mais lentos e sofreram maiores dissidências.
Ainda assim, os dois blocos principais da política europeia tinham um compromisso estratégico comum: reformar o capitalismo em favor da máxima liberdade possível do capital, eliminando as amarras que foram obrigatórias para fazer frente ao fantasma do socialismo, ao poderio da União Soviética e à força do movimento operário que se inspirava nas bandeiras da Revolução de 1917.
As reformas dos anos 80 e 90 começaram o desmonte paulatino do chamado Estado de bem-estar social, e foram aceleradas no século XXI. Privatizações, desregulamentações, eliminação de direitos, corte de gastos, investimentos e serviços públicos, rebaixamento dos impostos pagos pelos mais ricos e suas empresas, ofensiva antissindical: essas foram algumas das medidas que redefiniram a Europa nos últimos trinta anos.
As consequências sociais não tardaram em aparecer e se consolidar. Pela primeira vez desde 1945, a roda da prosperidade deixava de girar – os filhos das classes trabalhadoras viveriam pior que seus pais. A taxa de lucro das grandes corporações, por outro lado, se recuperava às custas do aumento na taxa de exploração e marginalização dos que viviam de seu próprio trabalho.
Nessa toada, a burguesia europeia se deu muito bem, claro, mas o crescimento foi pífio e a regressão social, calamitosa. Criou-se, assim, a base material para o surgimento de uma corrente anti-sistema, mas não de esquerda.
Trajetória
De forma semelhante à ascensão do fascismo italiano nos anos 20 do século passado, foram ganhando musculatura grupos que mesclavam a representação dos mais desfavorecidos com os interesses de frações burguesas que sofriam perdas frente à chamada globalização.
Essas organizações, ainda que relativamente adeptas do neoliberalismo, avançaram para um forte discurso nacionalista e protecionista. Não apresentavam, é óbvio, uma alternativa anticapitalista, mas passavam a expressar os interesses de quem era profundamente prejudicado pela abertura das fronteiras econômicas, tanto entre os trabalhadores quanto nas camadas médias.
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Marine Le Pen no segundo turno da França: chance concreta de vitória
Tradicionalista, conservadora e fundamentalista, montada no cavalo do nacionalismo e da xenofobia, essa extrema direita não nasceu nos salões da alta burguesia, mas na fusão entre o ressentimento de setores das classes trabalhadoras e o temor pela sobrevivência dos pequenos burgueses.
Surgiu nos andares de baixo, é fato, mas veio subindo. Com o sistema político já em crise e desagregação, decorrência da desidratação social de legendas tradicionais após duas ou três décadas de neoliberalismo, o comando emitido pelas agências políticas do capital foi de deslocamento à direita de todo o sistema, absorvendo determinadas pautas dos grupos extremistas, como a xenofobia e o protecionismo.
Ao mesmo tempo que se moviam à direita, recauchutando o neoliberalismo através do amálgama com uma dose controlada de nacionalismo, os velhos partidos burgueses, ainda que reduzindo fortemente a distância que os separava da extrema direita, continuaram a ter um discurso de competição com essa corrente.
Na medida em que a extrema direita via sua influência crescer, inclusive junto às classes dominantes, se deslocava ao centro, para facilitar a atração de eleitores dos partidos liberais e sociais-democratas, além da bênção dos grandes capitalistas. Novamente Marine Le Pen é uma prova escancarada dessa operação, moderando relativamente seu discurso e se comprometendo com a preservação da democracia liberal.
O impulso original da Frente Nacional, depois Reagrupamento Nacional, foi anti-sistema, até se consolidar nos andares de baixo. Depois começou a se aproximar dos liberais, em movimento simétrico ao que os liberais faziam em relação ao neofascismo.
Claro que o exemplo francês tem suas peculiaridades. Nem todos os grupos de extrema direita na Europa operaram a mesma trajetória de Le Pen. Muitos desses grupos e correntes etiquetados como “neofascistas” preferem acumular forças através da radicalização de suas posições.
Aliás, o giro da líder francesa trouxe-lhe uma dupla dor de cabeça: o surgimento de uma dissidência ainda mais extremista, puxada por Éric Zemmour, que terminou com 7,1% dos votos no primeiro turno, e o avanço de Jean-Luc Mélenchon, um dos raríssimos expoentes anti-sistema da esquerda europeia, sobre a base eleitoral de trabalhadores e assalariados da própria Le Pen, quase lhe tirando da segunda volta.
Mas não é apenas na França que podemos registrar o fenômeno de crescimento da extrema direita, que vem adquirindo dimensão continental.
A origem material é semelhante em todos os países nas quais o fenômeno ganhou expressão: a deterioração social após trinta anos de neoliberalismo, com o repasse de um fardo insuportável a setores das classes trabalhadoras, dos setores médios e até de frações subalternas da burguesia.
A natureza desses grupos apresenta igualmente destacadas similitudes: sua resposta ao neoliberalismo está no nacionalismo, na xenofobia e no conservadorismo religioso, além de mensagens antidemocráticas.
Vale destacar que o nacionalismo da maioria desses grupos de extrema direita dobra-se à hegemonia dos Estados Unidos sobre o sistema imperialista, sem maiores ambições geopolíticas. Basta ver a acomodação desses agrupamentos, no final das contas, às sanções contra a Rússia, à defesa do governo de Kiev e ao funcionamento da OTAN. Claro que há diferenças de abordagem, mesmo entre grupos de extrema direita. O húngaro Viktor Orbán é mais amistoso a Moscou, por exemplo, que o presidente polonês Andrzej Duda. Não há, porém, nenhuma evidência substanciosa de que a extrema direita europeia deseje abrir qualquer contencioso mais sério com a Casa Branca, muito menos romper com o sistema imperialista tutelado pelos Estados Unidos.
De toda maneira, a principal facilidade que a extrema-direita encontra para crescer, associada à aproximação dos velhos partidos burgueses ao seu ideário, é a inexistência de uma esquerda anticapitalista de massas que possa efetivamente lhe dar combate e disputar o galopante espírito anti-sistema.