No programa 20 MINUTOS ANÁLISE desta terça-feira (22/02), abordei a Rússia de Vladimir Putin. O enorme país, com seus 17 milhões de quilômetros quadrados e 150 milhões de habitantes, está no centro do noticiário atual devido à crise na Ucrânia.
Moscou não aceita o desequilíbrio do sistema de segurança coletiva criado após a II Guerra Mundial, provocado pela ambição dos Estados Unidos e da União Europeia de integrar a Ucrânia à Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).
Isso porque, ainda que seja um país capitalista, o Estado burguês russo tem contradições de fundo com a ordem imperialista, pois seu desenvolvimento colide com os interesses das potências imperialistas ocidentais.
Essa base concreta é também fator decisivo para aproximação da Rússia com a República Popular da China, com Cuba e com governos progressistas da América Latina, ainda que não partilhe a mesma perspectiva socialista reivindicada por essas outras experiências.
Funcionando em um regime semipresidencialista, a Rússia manteve, de Boris Yeltsin a Putin, as regras fundamentais da democracia liberal, com algumas características autoritárias e repressivas.
Aliás, acredito que para entender melhor a história da Federação Russa, nome oficial do país, criado em 25 de dezembro de 1991, talvez o melhor método seja dividir sua trajetória em duas etapas.
Boris Yeltsin
Na primeira delas, entre 1991 e 1999, sob o comando de Boris Yeltsin, antigo hierarca do Partido Comunista da União Soviética, viveu-se um processo de privatizações e desregulamentações que desmontou completamente o sistema socialista, restaurando a propriedade privada através da transferência de empresas estatais a funcionários e dirigentes do Estado.
Emergiu, então, uma nova burguesia, marcada pelo arrivismo e pela corrupção, enriquecida pelo botim contra riquezas nacionais antes controladas pelo Estado. Esses novos burgueses se entrelaçavam com a criminalidade, em uma acumulação primitiva de capitais que gerou verdadeiras oligarquias, fundidas ao governo Yeltsin.
Praticamente todos os serviços públicos foram desorganizados, o orçamento nacional arruinado e grande parte da população jogada na pobreza, desprovida de direitos conquistados durante o período revolucionário. A inflação disparou e os salários despencaram.
Reprodução/ @KremlinRussia_
Giro promovido por Putin, com o fortalecimento do Estado nacional, bateu de frente com a estratégia dos EUA e da Europa
Esse período Yeltsin, em síntese, teve a dominância do neoliberalismo mais macabro que já se conheceu. A Rússia nascia subordinada à ordem imperialista vitoriosa na Guerra Fria.
Mas o desmonte nacional fez surgir, no interior do bloco restaurador, uma fração dissidente, que se contrapunha ao modelo neoliberal, à desagregação do Estado, à subordinação frente ao Ocidente e à decomposição social.
Vladimir Putin
Ex-oficial da KGB, o serviço secreto soviético, que nos anos 90 seria vice-prefeito de São Petersburgo e diretor do Serviço Federal de Segurança (FSB, pela sigla russa), Vladimir Putin acabou agregando as forças dissidentes. Ainda que tenha sido indicado pelo próprio Yeltsin para sucedê-lo, na disputa eleitoral contra os comunistas, em 2000, discretamente começou a implementar um novo projeto de desenvolvimento capitalista, abrindo o que poderíamos definir como o segundo período da história russa moderna, que vai até os nossos dias.
O elemento central desse projeto foi a recuperação do Estado como regulador e organizador da economia. Não houve reversão importante das privatizações, mas se criou um sistema tributário sólido, os bancos estatais foram fortalecidos e as atividades econômicas passaram a ser regidas pela intervenção estatal.
Aproveitando-se do fenomenal crescimento do preço e do volume das principais exportações russas – petróleo e gás -, o governo Putin modernizou as Forças Armadas e recuperou serviços públicos, além de colocar em ordem as finanças governamentais.
Formados em um período histórico no qual o mercado mundial já estava dividido entre as burguesias imperialistas, os capitalistas russos, enriquecidos pelo neoliberalismo predador dos dez anos anteriores, se viram obrigados a reorganizar sua acumulação para dentro, o que impunha um Estado forte, inspirado por um forte componente nacionalista.
Putin desbaratou os oligarcas de Yeltsin, a vários colocou na cadeia, tomando suas propriedades e riquezas. Nos últimos vinte anos, reorganizou e recriou a burguesia russa, de certa forma disciplinando seus negócios através das agências governamentais, em um processo que lembra, de certa maneira, aquele conduzido por Bismarck na modernização da Alemanha do século XIX.
O giro promovido por Putin, com o fortalecimento do Estado nacional, bateu de frente com a estratégia expansionista dos Estados Unidos e da Europa para o leste europeu, que tinham os olhos gordos sobre as gigantescas reservas de petróleo e gás da região.
Colocou o pé na porta e travou o avanço rumo ao leste. Conseguiu manter em seu arco de alianças a Belarus e a Geórgia, além de disputar influência sobre a Ucrânia.
Cabe destacar que há uma forte contradição entre o anti-imperialismo do Estado russo e seu caráter burguês. Por ora, essa contradição pode ser atenuada por Putin, graças ao seu comando sobre os capitalistas nacionais. Mas o agravamento do cenário mundial pode levar rapidamente a que essa contradição empurre o Estado russo a uma grave crise, estampada no conflito entre os interesses nacionais e a lógica do capital privado.