No programa 20 MINUTOS ENTREVISTA desta quarta-feira (23/02), o jornalista Breno Altman entrevistou o psicanalista lacaniano e professor titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo Christian Dunker, que relacionou os conceitos de Jacques Lacan com a democracia e o momento brasileiro atual.
“No sentido alegórico, acho que o Brasil precisa de terapia sim. Estamos sofrendo muito, sofrendo com a palavra, pela palavra e através da palavra. Isso demanda uma transformação”, iniciou.
Ele fez um diagnóstico do país, que detalhou em seu livro Mal-estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil (Editora Boitempo), afirmando que a privatização do espaço público transformou a vida em condomínios, o que levou à “despolitização do sofrimento”, dificultando a transformação da realidade.
“A gente precisa olhar para uma formação que começa em 1973, quando a gente começou a criar muros, síndicos e vigilâncias, gerando a ideia de que o outro atrás do muro é violento. Vinte, 30 anos depois, temos uma situação de tratamentos diferentes que debilita certos grupos, em que não há reconhecimento entre pessoas, elas não conseguem conversar. Ou seja, foram criados vários condomínios, universidades particulares, hospitais privados, regiões que o Estado negligencia. Você olha para a institucionalidade brasileira e ela não é composta por uma representação pública. Isso é um sintoma, é a expressão da má resolução de um conflito criado na ditadura — e agravado com o advento das redes sociais”, discorreu.
Para explicar melhor sua argumentação, Dunker elucidou alguns conceitos lacanianos. Lacan introduziu e radicalizou a ideia de que o inconsciente não é um depósito de coisas ocultas numa dimensão metafísica, mas é algo que está na linguagem: “só possui inconsciente quem fala, se exprime nas repetições e alienações, nos sentidos, na leitura e escuta que temos de nós mesmos e do outro”. Com isso, o psiquiatra francês relocalizou o debate, antes ligado a algo que acontecia na mente dos indivíduos, “para uma experiência que é, por definição, coletiva”.
Assim Lacan permitiu uma redefinição do que é a própria política, “enquanto jogo de ocupação do espaço público e inscrição nas instituições como processos de expressão e reconhecimento”, ponto de partida de Dunker para a realização de sua análise.
O professor citou, também, outras duas contribuições importantes de Lacan que auxiliam na ponderação. A primeira, a de um entendimento de um sujeito menos ingênuo, que nem sempre é razoável e faz escolhas contrárias a seus próprios interesses. A segunda, a criação dos conceitos de gozo e noção de fantasia: “não basta explicar, educar, dar a tomada de consciência porque existe algo de prazeroso que nos prende na alienação”.
Tudo isso permite entender a ascensão, por exemplo, do bolsonarismo no Brasil: “o Bolsonaro tem um discurso que capta o ressentimento, que oferece como solução mais condomínios, mais muros, democracia só para quem pode pagar e morte para quem não pode. A gente descuidou da formação política e dos sofrimentos e aí alguém capitalizou o conflito”.
Portanto, ele alertou para o fato de que, nas eleições que se aproximam, não é só a disputa pelo voto que está em jogo.
“Tem muita coisa em jogo. Mais do que programas bem estabelecidos, ideias e valores, há uma retórica de afetos que decide o tabuleiro. A psicanálise pode ajudar a ler esses afetos. A questão é que tanto esquerda quanto direita caíram em algo que fez mal para todos: o discurso da culpa. Trabalhamos pautas de exclusão e inclusão em torno da culpa, em vez da responsabilidade, e aí, do lado da esquerda, acabamos perdendo”, refletiu.
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Psicanalista apontou fatores que estarão em jogo durante eleições
Lacan e a democracia
Dunker ainda destacou como a psicanálise pode ser um instrumento de radicalização da democracia ou de uma democracia mais direta, já que identifica o tratamento do conflito pela palavra, suspendendo a violência e supondo uma igualdade de acesso à expressão que vai se generalizando e ampliando.
“É preciso recuperar a palavra, reinventar a democracia e a psicanálise pode participar desse processo. Uma das razões para as quais a democracia foi se tornando opaca e sendo rejeitada é porque foi virando um espaço distante, lento, em que as pessoas não se expressam, isso deve ser mudado”, ressaltou.
Conversar, porém, não significa que não existirão conflitos ou confrontos: “conversa para a psicanálise é pancada”. Aliás, o professor criticou como em muitos casos somos muito brandos e permissivos, por exemplo no que diz respeito ao neopentecostalismo, “que exporta uma religiosidade de falsas promessas, com casos de ingerência no governo e aí sob um discurso de suposto respeito ideológico acabamos permitindo um fundamentalismo tosco e inconsequente”.
Nesse sentido, ele tratou a psicanálise como um instrumento complementar ao marxismo, por exemplo, por auxiliar a esquerda a ser menos economicista, entendendo que as mudanças sobre a economia estão cada vez mais intricadas às mudanças na cultura e na relação das pessoas com elas mesmas.
“Não existe uma relação propriamente dita entre Lacan e Marx, mas a gente não precisa pensar que eles precisam casar para funcionarem juntos. Há afinidades científicas entre os dois e acho que mesmo suas diferenças podem nos ajudar a pensar, levando à transversalidade do saber”, concluiu.