Na avaliação do professor de História Contemporânea na Universidade de São Paulo (USP) Lincoln Secco, o Brasil deve ao Partido dos Trabalhadores a vitória cidadã sobre o neofascismo nas eleições de 2022. “O que chega ao poder agora é muito além do Lula e do PT, mas a referência foi o PT. Embora tivesse havido essa ampla coalizão social para derrotar o fascismo, ela não teria sido vitoriosa se não existisse o PT”, argumentou, em entrevista a Breno Altman, no programa 20 MINUTOS desta segunda-feira (28/11).
O historiador ressalta a resiliência do partido e do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva no período pós-golpe de 2016 como demonstração de legitimidade do petismo e do lulismo. “Nesse período de fascistização no Brasil, qual partido teve resiliência? Em 2016, a imprensa me perguntava se o PT acabou, e eu dizia ‘não, não acabou, acho que quem vai acabar é o PSDB’. Foi o que aconteceu, porque o PT não é só um partido. É a expressão de um campo popular que é muito difícil fazer desaparecer”, argumenta.
“Em 2018, o PT teve o candidato preso, não podia ter seu principal candidato, estava numa onda de descrédito. De 2005 até hoje o PT sofre ataque todos os dias na mídia, que diz que é o partido mais corrupto da história, e em 2018 esse partido, contra tudo isso, foi ao segundo turno e resistiu. Perdeu, mas foi uma força fundamental ali. Sem o PT não haveria a vitória deste ano”, relembra Secco. “O que aconteceu nas eleições? Todo mundo, do centro liberal à esquerda mais radical, chegou à conclusão de que era o PT, porque se Bolsonaro fosse reeleito íamos possivelmente entrar num regime fascista. O PT continua sendo a referência dos socialistas no Brasil.”
Para o professor, no próximo período o partido deveria preservar autonomia em relação ao governo e se responsabilizar por organizar mobilização popular que garanta governabilidade a Lula. “O problema está no PT, não no governo. O governo vai fazer a tarefa dele, mas se o PT tiver alguma autonomia relativa, podemos, mais à frente, ir um pouco mais à esquerda”, considera.
Autor, pelo selo Ateliê Editorial, dos livros História do PT, de 2018, e o novo História do PCB, Secco critica a má compreensão, por parte do partido de Lula, sobre o que significa ser republicano no Brasil, especialmente em governos de coalizão com setores liberais que revelam pendores golpistas tanto histórica como recentemente. “Ser republicano, numa ordem burguesa, democrática, capitalista, é exercer o poder e o mandato que o povo lhe deu. O republicanismo é agir dentro da legalidade, mas respeitando o mandato”, conceitua o historiador. “Tem que ter uma política em relação aos tribunais superiores, às Forças Armadas, às estatais, no sentido de orientá-los a adotar o novo modelo. Quem for contra o novo modelo está contra o povo”, formula. E exemplifica: “Dentro da lei, o PT poderia ter escolhido pessoas para o Supremo Tribunal Federal que fossem radicalmente favoráveis às estatais, antineoliberais. Isso é ser antirrepublicano? De modo nenhum, é ser republicano de verdade”.
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Professor de História Contemporânea na Universidade de São Paulo (USP) Lincoln Secco é convidado no 20 MINUTOS desta segunda (28/11)
Segundo Secco, embora o PT nunca tenha conduzido uma política de formação política séria, esse papel é cumprido por instituições ligadas ao partido, como o Movimento Sem Terra (MST), entre outros. “Durante esse período de fascistização, para onde as pessoas correram? Para as instituições tradicionais que a classe trabalhadora reconhece. A principal delas é o PT”, conclui.
Diante da consolidação do PT como partido de governo, a caminho do quinto mandato em 20 anos, Altman perguntou sobre a viabilidade do surgimento de alternativas revolucionárias à esquerda no Brasil. “Existe se essa esquerda souber se construir sem apenas negar o PT”, respondeu. Os grupos de esquerda que tentaram essa via desde meados dos anos 1990 o fizeram a partir de um discurso invariavelmente antipetista: “É um antipetismo de esquerda, mas é antipetismo. É legítimo fazer a crítica ao PT, mas o PT é um partido de massa, e você não vai construir uma esquerda como foi o PCB no pré-1964 se for frontalmente contrário às políticas que o PT implementa. Esse erro foi cometido pela esquerda nos dois primeiros mandatos de Lula. Parte dela era contra Prouni, cotas, Bolsa Família.”
Secco coloca ressalvas ao modo como o partido, no governo, tratou a questão democrática e a questão militar. “O PT não tinha política militar, ou a que teve foi um desastre. Tem que entender que as Forças Armadas não são neutras e, na periferia do capitalismo, funcionam em momentos de crise como tropas de ocupação colonial, não como uma instituição nacional”, afirma. Ao contrário dos oficiais conservadores de direita que fizeram o golpe de 1964, se afirmavam nacionalistas e em parte acreditavam nisso, os atuais nem sequer são nacionalistas mais: “Eu diria que são negociantes. Não é que negociam só soberania nacional, entrega de base de Alcântara. São negociantes mesmo, lutam para ter cargos, influência em licitações, compras internacionais e ganhar dinheiro com isso. Não há mais o que se esperar dali”.
Até por isso, o historiador reivindica uma prioridade para o novo governo: “Para mim, a primeira questão é o que vai ser feito com a família Bolsonaro e as pessoas que cometeram crimes nesse governo. A solução que nós, como país, demos para os crimes da ditadura de 1964 foi uma não-solução. Simplesmente resolvemos esquecer, e gente sabe que graças àquela não-punição houve o golpe de 2016”.
A derrubada da presidenta Dilma Rousseff em 2016 significou o acirramento da disputa por hegemonia, em comparação ao que aconteceu em 1964, afirma. “O judiciário de 1964 era conservador, mas não se articulou sob uma liderança que é um verdadeiro partido, como foi a Lava Jato. Em 2016, o Exército ficou na sombra, porque não precisou ir às vias de fato. Mas teve um papel decisivo também. É o problema do republicanismo”, insiste o professor Lincoln Secco.