Na interpretação do historiador Luiz Felipe de Alencastro, a Independência não rompeu a matriz colonial herdada de Portugal pelo Brasil, que só se viabilizou como Estado nacional a partir do fim da escravização de africanos em seu território.
Em entrevista ao jornalista Breno Altman, no programa 20 MINUTOS desta sexta-feira (09/09), o historiador lembrou que a escravização de africanos livres, proibida por lei brasileira de 1831, prolongou-se ilegalmente até 1888 e precipitou a queda do Império no ano seguinte. “Não é que a escravidão era imoral no Brasil, ela era ilegal. Essa ficha ainda não caiu no debate político brasileiro, e eu diria até que caiu pouco no movimento negro”, adverte.
Autor de O Trato dos Viventes: Formação do Brasil no Atlântico Sul (ed. Companhia das Letras), o historiador traça um paralelo entre a Abolição e o processo de transição da ditadura de 1964 para a redemocratização do país. “O império tinha uma política igual à do Geisel para acabar a ditadura: lenta, gradual e segura”, compara.
A Lei Feijó, de 1831, foi descumprida até 1850, compondo 750 mil africanos trazidos ilegalmente em 19 anos, entre os 4,8 milhões de escravizados ao longo de 300 anos da história brasileira. “A lei de 1831 tinha dois artigos. Um, todo africano que entrar aqui como escravo vira pessoa livre ao pisar na praia. Dois, quem mantiver esses caras na escravidão está sequestrando pessoa livre e é punido nos termos do código criminal que determina quatro anos de cadeia, por ser um sequestrador”, documenta o professor.
A transição “lenta e gradual” começou em 1850, com a Lei Eusébio de Queirós, que estancou a entrada de africanos escravizados no Brasil. Na sequência vieram a Lei do Ventre Livre, em 1871, que cessou a reprodução interna de escravizados, e a Lei dos Sexagenários, em 1885, que determinou a libertação dos maiores de 60 anos. “Aí veio o pessoal abolicionista, e a direção política do Império abandona a política do Geisel e vai para a do Ulysses Guimarães, de diretas já, que é o abolicionismo”.
Em 1888, a Lei Áurea aboliu a escravização, num processo que indenizou os escravizadores, e não os escravizados. “Aí o Império caiu, porque perdeu a base, os fazendeiros, e não conseguiu conquistar uma base nova, os fazendeiros republicanos, que já estavam na imigração”, explica.
Alencastro assinala a amplidão da aliança escravista que “empurrou com a barriga” a pressão da Inglaterra pela libertação, intensificada desde a declaração da Independência em 1822: “Ninguém disse para os escravizados que não eram escravos, mas gente livre, que estava na mão dos fazendeiros e também dos pequenos proprietários. A escravidão não era só o fazendeiro de café com 200 escravos, era também a viúva que tinha um escravo, o vigário que tinha três, o padeiro que tinha dois, a escravidão urbana”.
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Historiador Luiz Felipe de Alencastro é entrevistado de Breno Altman no 20 MINUTOS desta sexta-feira (09/09)
O historiador sustenta que foi a lei de 1850, mais que as outras, que viabilizou a constituição do Brasil como nação: “O Estado que fica independente tem um pulmão na África e não é viável, é um Frankenstein, porque não pode mais ter acesso permanente à reserva de mão de obra que está habituado a pilhar”.
A Inglaterra, potência dominante de então, intermediou a aceitação da independência do Brasil por Portugal, e cobrou por isso um valor que o professor calcula equivalente ao preço de 300 mil vacas inglesas: “O dinheiro não saiu da Inglaterra. O Brasil pagou no lugar de Portugal, Portugal reconheceu o Brasil, a Inglaterra também reconheceu, e a dívida ficou rolando por décadas. O Brasil pagou tudo direitinho, era um bom pagador”.
O caso brasileiro não foi isolado. Alencastro lembra que Colômbia e Peru tiveram que assimilar dívidas contraídas pela Espanha e que o Haiti pagou a França até 1950. “Além de ser sangrado quando era colônia, o Haiti ainda foi condenado a pagar indenização até 1950. É uma das coisas escandalosas da história da França”, diz.
Ele ressalta que o colonialismo não desenhou colônias para serem nações e, portanto, não existiu ideia de unidade territorial do Brasil nesse período. O sistema econômico se constituiu de uma zona produtiva escravista na América e uma zona de reprodução de escravos na África.
“O sentido da colonização é que o Brasil cresce como exportador, mas também como importador de africanos, e graças a isso é que o país vai crescer. A América portuguesa foi construída como uma região de exportação de commodities, mas não para ser um território nacional, porque englobava também a África”, afirma.
A presão anti-escravista inglesa tinha por objetivo fazer cessar as relações horizontais no Atlântico Sul. “As relações tinham que ser longitudinais, norte-sul. Primeiro, a Inglaterra explora Portugal que explora o Brasil que explora Angola. Depois da Independência, a Inglaterra explora o Brasil que explora Angola”, interpreta.
Luiz Felipe de Alencastro delimita diferenças na formação escravista do Brasil e dos Estados Unidos: “Aqui a escravidão era nacional, nos Estados Unidos houve um polo abolicionista. No começo, o norte explorou o sul como se explora uma colônia exportadora de commodities. Os nortistas impuseram o fim do tráfico aos escravistas do sul já em 1807”.
A Inglaterra proibiu o tráfico em 1808 e aboliu a escravidão definitivamente em 1833. Colônia inglesa até 1776, os Estados Unidos seguiram o ato inicial da Inglaterra em 1808, e tornaram a escravidão inconstitucional em 1865, no contexto da Guerra Civil entre norte e sul. Diferentemente do que aconteceu nas Américas espanhola, francesa e inglesa, o Brasil foi a única colônia europeia no continente que não se fragmentou após a independência.