O 20 MINUTOS ENTREVISTA com Breno Altman desta sexta-feira (17/06) tratou dos enigmas que ainda circundam em relação às Jornadas de Junho de 2013, com a cientista social Maria Caramez Carlotto, defensora da ideia de que a esquerda não compreendeu o sentido daquelas manifestações de massa e abdicou de vitórias que eram suas naquele momento.
Para Carlotto, a pauta originária das Jornadas de Junho era antineoliberal e acabou hostilizada pela esquerda e instrumentalizada pela direita, com consequências persistentes até hoje.
“Ao transformarem junho de 2013 num tabu e assumirem uma posição de pura condenação, setores da esquerda perderam a oportunidade de disputar aqueles eventos. Isso beneficiou a direita, que se rearticulou para assumir a face que tem hoje, de um movimento de massa”, disse.
A professora da Universidade Federal do ABC tenta compreender aquele momento por ângulos adicionais, observando que o crescimento econômico elevou o preço dos imóveis e atirou mais brasileiros às periferias, enquanto o acesso ao automóvel para parcelas maiores da população diminuía a velocidade média nas grandes cidades.
O resultado combinado seria o aumento do tempo de deslocamento, o que se refletiu nas manifestações convocadas inicialmente pelo Movimento Passe Livre (MPL), com uma base social dos protestos de estudantes do ensino superior que também trabalhavam
“Não era apenas ou majoritariamente uma classe média alta, embora ela estivesse presente em peso, mas sim jovens da periferia que se solidarizaram com o movimento, entre outros motivos, porque perdiam quatro horas no trânsito entre o trabalho e o estudo”, afirmou Carlotto.
A base social dos primeiros protestos, conclui, emergia a partir e por causa das conquistas de uma década de governos progressistas, que, paradoxalmente, pioraram a vida nas grandes cidades. “Massas trabalhadoras estavam sendo incluídas no ensino superior. Sobretudo, desde 2003, há no Brasil um processo sólido de escolarização, cujos resultados políticos a gente ainda não compreendeu completamente”, argumenta, classificando a juventude trabalhadora escolarizada como protagonista das primeiras manifestações, a partir de 13 de junho de 2013.
Carlotto procura interpretar aqueles eventos, que classifica como complexos e contraditórios, fazendo uma leitura à luz das responsabilidades da própria esquerda: “não tenho dúvida que houvesse interesses internacionais agindo. Isso é do jogo, sempre vai ser assim. Mas que a esquerda não tenha conseguido entrar nessa disputa para valer é algo que exige de nós uma reflexão”.
Facebook/Maria Caramez Carlotto
Cientista social Maria Caramez Carlotto é a entrevistada de Breno Altman no ’20 MINUTOS ENTREVISTA’ desta sexta-feira (17/06)
Exemplos dessa atitude reativa seriam o retraimento de parte da esquerda no primeiro protesto pós-revogação do aumento das tarifas e, no front político, posições tomadas pela ex-presidente Dilma Rousseff e pelo então prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, em resposta aos protestos.
“A gente devia ter ido ao primeiro protesto pós-revogação para dizer que fomos nós, que essa vitória foi nossa, mas já havia na esquerda um movimento de ‘isso é coisa de coxinha’”, recorda.
“Pressões do neoliberalismo”
Dilma, para a professora, rendeu-se às pressões do neoliberalismo quando ainda acumulava força política para encurralar o lado adversário. O mesmo aconteceu após a reeleição em 2014, resultante ainda da força acumulada pelas realizações dos governos petistas: “ela acenou para os dois lados, e mais ainda para o lado de lá, e assim fortaleceu o lado que viria depois a lhe derrubar”.
O laboratório que as Jornadas de Junho proporcionaram à direita permitiram a rearticulação das forças conservadoras e o advento de organizações como o Movimento Brasil Livre (MBL), que teria criado a sigla de modo oportunista, para confundir quem admirasse o até então vitorioso MPL.
O MBL, segundo Carlotto, não possuía base social e não se relaciona integralmente com a ascensão posterior do bolsonarismo.
Questionada por Altman se junho de 2013 foi o ovo da serpente bolsonarista, a a cientista social lembrou que a visão dos militares sobre a ditadura militar (1964-1985) e o culto ao coronel torturador Carlos Brilhante Ustra são anteriores a 2013, se rearticularam após a instalação da Comissão da Verdade por Dilma, em 2012, e foram subestimadas pelo polo progressista até as vésperas do golpe de 2016.
“Junho catalisou uma série de processos, mas não explica totalmente o bolsonarismo. Nós não prestamos atenção à visão militar, que tem papel muito grande no bolsonarismo. A cultura atual das armas e da violência deriva disso”, opina.
A resposta à violência protagonizada pela Polícia Militar do então governador de São Paulo Geraldo Alckmin, em 18 de junho de 2013, desaguou, contraditoriamente, nos protestos de 2015, em que os manifestantes tiravam fotos orgulhosos ao lado dos policiais.
A pesquisadora rejeita o termo “esquerda identitária” como contraponto ao conjunto de ações da direita e da extrema direita.
“O que se chama de esquerda identitária são movimentos feministas, negros, indígenas. Discordo que sejam identitários, porque não escolhi ser mulher. São questões estruturais. Ser negro no Brasil não é uma questão de identidade, é uma questão entre viver e morrer”, afirmou Carlotto.