“Ameaça chinesa”, “trabalho escravo”, “ditadura”, “violações dos direitos humanos”, “campos de reeducação uigur” e agora “vírus chinês”. “Destruição ambiental” entra no rol dessas narrativas anti-chinesas que têm muito pouco de altruísmo. Além disso, se sustentam ao invisibilizar alguns feitos da China, tais como a erradicação da pobreza, a transição (o único país!) de IDH baixo para alto e conversão no maior exportador mundial de vacinas e EPI’s em época de pandemia. Entre os feitos está o de ser já líder na nova fronteira de tecnologias no ramo da sustentabilidade.
Essa dissonância da narrativa depende daquilo que Domenico Losurdo chamou de “o terrível poder de fogo multimidiático” dos EUA e seus aliados. Ou seja, um domínio dos novos meios da sociedade do espetáculo, capazes de vilanizar os inimigos através do controle das narrativas, das emoções e da memória histórica. São guerras psicológicas que se utilizam de um quase monopólio sobre as comunicações globais – além da televisão, celulares, computadores e redes sociais – e, com efeito, podem inflamar a opinião pública, legitimando qualquer difamação, desestabilização, sanção e/ou intervenção. No caso da China, além das em campanhas de construção de narrativas falsas e/ou deturpadas, se somam múltiplas estratégias de Washingtons para conter a potência ascendente da Ásia, incluindo desde tentativas de desmembramento territorial (Taiwan, Hong Kong, Tibet, Xinjiang), passando por cerco militar (Península Coreana, Guam, Filipinas, etc) e por guerra comercial.
Vejamos como se dá a construção desta narrativa acerca da questão ambiental. De um lado, com um pé na verdade, é justo reconhecer que as contradições ambientais se avolumaram como decorrência do acelerado desenvolvimento chinês. Podemos destacar a poluição dos ar de suas grandes cidades (16 das 20 cidades mais poluídas do mundo são chinesas e apenas um terço de suas 340 cidades monitoradas atendem aos padrões de poluição); a contaminação de boa parte de suas águas superficiais e de seus lençóis freáticos; e a destruição de vastas porções de sua cobertura vegetal, resultando em desertificação, perda de áreas agricultáveis e de biodiversidade. E estes são alguns dos muitos problemas que o país oriental tem buscado enfrentar.
Por outro lado, a persuasão da falácia reside em simular a veracidade, distorcendo uma dinâmica mais complexa. Assim, convém silenciar acerca do fato de o desenvolvimento dos atuais países ricos do Ocidente ter tido um elevado custo ambiental, bem como do contexto adverso do desenvolvimento chinês. Ora, é inexorável que um país que fez o PIB crescer cerca de 100 vezes, urbanizou mais de 650 milhões de pessoas e retirou 850 milhões da pobreza nas últimas quatro décadas tenha pressionado a demanda por bens e serviços e, consequentemente, por recursos e energia. Convém sublinhar, aliás, que parte dos impactos ambientais na China se deve à produção de bens que são consumidos justamente no Ocidente!
De todo modo, a China tem enfrentado os desafios e pressões ambientais fruto de seu acelerado desenvolvimento, acentuado por complexas condições geográficas e demográficas. Assim, o país revisou suas estratégias e passou a trabalhar o conceito de civilização ecológica (é justamente esta capacidade de revisar suas ações que explica a vitalidade do PCCh, desde os excessos da Revolução Cultural até os erros que levaram ao colapso do campo soviético). Trazido à tona em em 2007, o conceito foi incorporado à Carta do Partido no seu 18º Congresso Nacional em 2012 e à Constituição em 2018. Visa o desenvolvimento sustentável em suas três dimensões – ambiental, econômica e social -, servindo de referência para as políticas públicas ambientais. A ideia de uma “Bela China”, também incluída na Constituição chinesa, revela o redirecionamento para um desenvolvimento qualitativamente superior.
Além disso, entre as inúmeras políticas públicas voltadas à questão ambiental, pode-se destacar, por exemplo, o Plano Nacional de Desenvolvimento Agrícola Sustentável (2015-2030), o Plano de Combate à Pobreza no Setor Florestal (2013-2020) – em articulação com a ONU – e ainda o Plano Nacional Especializado de Redução da Pobreza com Água, cuja ênfase é a conservação de recursos hídricos em áreas empobrecidas. O Relatório de progresso da China sobre a implementação da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável (2019) também dá bem a dimensão do ritmo das transformações e do progresso nesse campo.
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Apesar das contradições ambientais, a China nem de longe assimilou o padrão de consumo e poluição reinante nas sociedades norte-atlânticas
Muitas dessas políticas se desenvolvem em consonância com os organismos internacionais. São os casos do protagonismo de Pequim na cooperação internacional em diversas pautas ambientais, como a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável e o Acordo de Paris sobre Mudanças Climáticas (2015).
Na mesma linha, é notável também o rápido progresso chinês em tecnologias modernas e sustentáveis. A malha de trens de alta velocidade da China em operação já passou 38 mil km (mais 33 mil km em construção) – enquanto a Espanha, segundo do ranking, tem 4,2 mil e os EUA, 19º no ranking, pouco mais de 300 km. Sobre a fabricação de módulos de painéis solares, em 2019, 8 das 10 maiores empresas (e mais de 70% do mercado mundial) eram chinesas, exceção feita a Canadian Solar e Korean Hanwha Q Cells. Aliás, em 2019, a capacidade fotovoltaica solar instalada da China alcançou 204.700 MW (32,6% do total mundial), enquanto a dos EUA atingiu a marca de 75.900 MW (12,1% da produção global). Em 2018, considerando o conjunto das energias renováveis (solar, hidráulica, eólica, geotérmica e de biocombustíveis) a China gerou 1,8 milhões de GWh, enquanto o segundo do ranking mundial, os EUA, geraram 764 mil GWh – uma diferença que cresce ano a ano.
Outro campo de inovação ilustrativo é o de motores elétricos. Em 2018, a China detinha quase 50% do estoque global dos automóveis elétricos, seguida pelos EUA, com 22%. Os números pertinentes ao estoque de ônibus elétricos são ainda mais assimétricos, já que a China detinha, em 2018, cerca de 421.000 unidades, enquanto os países europeus, o Japão e os EUA detinham pouco mais de 2.100 em uso. Em turbinas eólicas, as empresas chinesas têm 10 dos 15 primeiros lugares no ranking global de nova capacidade instalada em 2020. Isto é, a China tem feito uma mudança em direção à conversão e/ou criação de ‘fábricas verdes’ e para o desenvolvimento de ‘produtos verdes’. Além da liderança na produção e exportação nestes setores (painéis solares, trens de alta velocidade, veículos elétricos, turbinas eólicas e baterias), o país também é o maior investidor em energia limpa no mundo.
Apesar das contradições ambientais, a China nem de longe assimilou o padrão de consumo e poluição reinante nas sociedades norte-atlânticas. Tampouco aderiu a teses que antagonizam desenvolvimento à sustentabilidade. Pequim sabe que sem inovações e capacidade estatal não há solução viável e de longo prazo. Por isso, o país tem buscado uma resposta progressista para dar conta dos desafios e pressões ambientais que atravessam seu desenvolvimento. Ou seja, a complexa tarefa de elevar o padrão de vida sem replicar a lógica insustentável do capital é o desafio do século XXI cuja experimentação chinesa procura caminhos – divergente de certo ativismo voluntarista socioambiental, cuja expressão follow the money (siga o dinheiro) permitiria desvendar os interesses geopolíticos em jogo.
Enfim, não se trata de subestimar os desafios ambientais que o governo chinês tem de enfrentar, mas expor uma visão de totalidade capaz de explicitar a invisibilização e até o etnocentrismo ocidental. Certos vieses turvam o entendimento das rápidas transformações em curso e, no caso em questão, invertem a lógica: a China não apenas está deixando de ser o epicentro dos problemas ambientais contemporâneos, como é a fronteira de inovações no que tange a sustentabilidade, tanto e termos de tecnologias, quanto de gestão política.
Diego Pautasso é doutor e mestre em Ciência Política pela UFRGS e autor do livro China e Rússia no Pós-Guerra Fria.
Isis Paris Maia é mestranda em Política Públicas pela UFRGS e historiadora.