Até 2020, o Brasil foi o principal parceiro comercial da Argentina – forte consumidora de manufaturas brasileiras–, seguido pelos Estados Unidos e China, alternando entre segundo e terceiro lugar. Contudo, no contexto da pandemia de COVID-19 a China ultrapassou o Brasil e tornou-se a primeira parceira comercial argentina.
Da perspectiva da inserção internacional brasileira, essa mudança alimentou preocupações, por um lado, reforçou a China como concorrente do Brasil pelo mercado de manufaturados argentino. De outro, essa transformação ocorreu em um momento em que o Brasil está com menos condições políticas de exercer um papel construtivo que possa mitigar danos, por pelo menos três razões: i) as relações bilaterais com a Argentina estão deterioradas, devido ao antagonismo do governo Bolsonaro ao de Alberto Fernández; ii) o Brasil abandonou qualquer perspectiva de exercer papel como líder a fim de impulsionar a autonomia da região, e; iii) a China aprofundou sua incursão econômica e política na América do Sul, aparecendo como uma importante alternativa aos países, impulsionada não só pelo peso e força que possui na economia mundial, mas pelo vazio deixado pelo Brasil na região.
Assim questionamos, o Brasil perdeu a Argentina para a China? Há uma mudança de eixo na região de Brasília para Pequim?
Relações China-Argentina diante do refluxo do Brasil
A Argentina possui recursos naturais importantes para o crescimento chinês, incluindo minerais estratégicos, como o lítio, ferro e cobre. Da mesma forma, a região dos pampas é um importante fornecedor de soja, carne suína e outros insumos agrícolas, e o país oferece ainda um mercado substancial de classe média para a compra de bens e serviços chineses de alto valor agregado, e acesso aos mercados ainda maiores por meio de sua participação no Mercosul.
O potencial argentino para a China elevou a relação bilateral para uma Parceria Estratégica em 2004, seguida de uma elevação do relacionamento para uma parceria estratégica abrangente durante a visita do presidente chinês Xi Jinping ao país, em 2014. Para o Brasil, a intensificação das relações China-Argentina sinalizou vulnerabilidades, em meio às dificuldades de avanço no MERCOSUL e ao refluxo de liberalização comercial, o país perdeu mercado de produtos manufaturados para a China na Argentina, o que traz consequências para o Brasil, uma vez que essa categoria de bens alimenta cadeias produtivas mais complexas que geram mais empregos, influenciam positivamente na criação de novas tecnologias e são vendidos com valores agregados bastante superiores a produtos primários.
Para além do comércio, a cooperação da China com a Argentina também se diversificou para novos campos. Desde 2009, seguido de várias renovações, China e Argentina mantêm contrato de swap cambial, o qual o país sul-americano pode sacar em caso de necessidade financeira (foi o que ocorreu, por exemplo, em 2015, quando o volume de recursos emprestado pela China chegou a 40% das reservas argentinas). Os investimentos chineses no país também cresceram nessa última década. O refluxo na internacionalização das empresas brasileiras, principalmente de engenharia e construção duramente atingidas pela Lava Jato, e o desmonte de políticas de incentivo do BNDES, que financiavam exportações e investimentos na região, inclusive em infraestrutura, deixaram mais espaço para o gigante asiático, que assumiu no início dos anos 2010 obras de infraestrutura descontinuadas por empresas brasileiras. Em 2020, o Banco de Desenvolvimento da China e o Banco de Exportação e Importação da China não concederam nenhum empréstimo aos governos da América Latina, mas em contrapartida ampliaram seus investimentos em setores chaves: infraestrutura e matérias-primas. O recente estabelecimento de um acordo de transportes ilustra o aumento de investimentos chineses diretos na Argentina, foi firmado com representantes das companhias China Railway Construction Corporation (CRCC), China Machinery Engineering Corporation (CMEC) e Yutong, com o objetivo de revitalizar e criar novas linhas de ferrovias no interior do território argentino, investindo cerca de US $4,7 bilhões. Além da negociação que está em curso do acordo de investimento de US $3,7 bilhões na indústria argentina de suínos, com a construção de granjas inteligentes para a exportação de 822 mil toneladas de carne suína.
Outro destaque de cooperação foi no setor espacial, em que o território platino conta com um observatório espacial chinês para missões à Lua, espaço que é operado majoritariamente por militares chineses, que está instalado na província argentina de Neuquén, na Patagônia, uma região estratégica para o rastreamento de objetos no espaço e forte contribuinte para o projeto espacial chinês. O projeto foi recebido com muita cautela pelos EUA, já que a estrutura é capaz de captar sinais de satélites norte-americanos e de outros países no espaço, mas constitui-se em um importante ativo da relação bilateral sino-argentina.
Assim, percebe-se que a China tem se apresentado a Argentina como importante parceira econômica, expandido os canais de cooperação, diante do vazio deixado pelo Brasil, fato que tem se aprofundado no governo Bolsonaro. Muitos comentários e farpas foram trocadas pelos presidentes Jair Bolsonaro e o argentino Alberto Fernández: antes, quase não dialogaram após a vitória de Fernández em 2019, no último mês de maio Bolsonaro afirmou que não haveria mais carne na Argentina por conta da proibição da exportação do produto, o clima hostil aumentou ainda mais após a pandemia de Covid-19 e até o papel do exército argentino foi alvo de tweet ofensivo do presidente brasileiro.
Por seu passo, o governo de Fernández tem reconhecido cada vez mais o importante apoio oferecido pela China ao país para o desenvolvimento de projetos produtivos, bem como de infraestrutura, como os de água e saneamento, habitação, conectividade, energias renováveis e transportes. A política externa de Bolsonaro, que antagonizou com o presidente argentino e, de outro lado, criou tensões nas relações com a China, não colocou o Brasil em posição política confortável para lidar com o aumento da presença da China na região e com o afastamento do parceiro platino.
Gov Cn/Reprodução
Preisdente Xi Jinping discursando na cúpula especial dos líderes do Grupo dos Vinte
No geral, Bolsonaro se apresenta claramente como opositor aos líderes que não mantenham ideologias de direita (como por exemplo os governos da Argentina, Venezuela e recentemente, declarou “Perdemos agora o Peru” quando Pedro Castillo liderava a contagem de votos), outrossim, observa-se uma explícita subordinação aos EUA em termos regionais, fazendo com que o país se oponha a iniciativas que demonstrem sua possível liderança. Assim sendo, perde-se cada vez mais a capacidade de barganha no cenário internacional e também em mercados nos países vizinhos.
Discordâncias
Na falta de uma estratégia comum, Brasil e Argentina tem divergido sobre como lidar com a presença chinesa na região, sendo que a Argentina tem se mostrado mais aberta a adotar proposições do gigante asiático, o que ocorre no caso do 5G e da Belt and Road Initiative (BRI). No Brasil, a questão da instalação da rede 5G pela empresa chinesa Huawei, que detém a melhor relação custo/benefício, vem acompanhada de opiniões conflitantes do governo federal. Aliado e pressionado pelo governo dos EUA a tomar medidas restritivas contra a empresa chinesa, o governo brasileiro tomou a possibilidade de banir a empresa dos leilões e até mesmo se dirigiu de forma ofensiva ao governo chinês, desgastando assim a relação diplomática Brasil-China. Somente diante da grande dependência econômica que o Brasil tem para com a China e o forte avanço da pandemia do Covid-19 que, pela pressão de grupos econômicos e políticos interessados nas relações sino-brasileiras, a decisão foi revista.
Em contradição ao caso brasileiro, a Argentina seguiu outro caminho. O debate sobre a participação da empresa chinesa na instalação da rede 5G no país está mais pacificado. Em 2020, o Ministério das Relações Exteriores da Argentina entrou em contato com empresários chineses para discutir sobre os investimentos no país e os impactos da tecnologia 5G no mundo, colocando-se a previsão da incorporação do 5G, com apoio da Huawei, já para 2022. Outro ponto de debate da relação com a China é a adesão à Nova Rota da Seda. O Brasil já se consolidou como o principal parceiro comercial de Pequim na região e também como maior destino de investimentos chineses na América Latina, dinâmica que uma negativa à Iniciativa do Cinturão e Rota dificilmente mudaria. Ademais, o alinhamento do governo Bolsonaro com Trump nos últimos dois anos atuou como limitação para que o país aventasse participar da iniciativa.
Em contraponto ao Brasil, na Argentina a adesão à Rota da Seda ganha cada vez mais força. Devido à difícil situação macroeconômica em que se encontra, o país tem enfrentado muitas dificuldades de acesso a linhas internacionais de crédito. Espera-se que a entrada na BRI possa alavancar recursos e investimentos chineses no país. A China tem, inclusive, negociado com a Argentina uma linha de crédito para financiar a importação de equipamentos chineses para a modernização e desenvolvimento do parque industrial argentino.
Consequências
Deve-se mencionar que a intensificação das relações China-Argentina contribuiu para a diminuição da complementaridade econômica do Brasil com a Argentina, ao deslocar as exportações brasileiras de manufaturados e investimentos brasileiros, bem como por consequência dificultou o avanço da integração regional. Ao lado da expansão chinesa, o vazio deixado pela ausência de liderança do Brasil tem contribuído para que a região não consiga desenvolver uma estratégia coletiva para lidar com a ascensão chinesa. O papel do Brasil nos diversos acordos e blocos realizados na região é de considerável importância, tendo em vista o tamanho de sua população, da sua economia,
de seu território, etc, assim, se se ausenta de coordenar mecanismos de concertação e integração, há diminuição da capacidade regional para lidar com atores externos e garantir autonomia.
Lembre-se que juntos, Argentina e Brasil representam cerca de 63% do território da América do Sul, bem como 61% do PIB da região. Como economias mais avançadas, foram pilares para a construção de iniciativas de integração regional. A deterioração da relação entre ambos também dificulta uma reação à China. Como consequência os ventos sul-americanos têm soprado em direção a Beijing.