Os dados que mostram o número de óbitos por distritos na cidade de São Paulo, divulgados pela Secretaria Municipal de Saúde, demonstram que a pandemia não está se difundindo de maneira uniforme pelo território. Apesar dos primeiros casos terem ocorrido na zona sudoeste, a de maior renda da cidade, não é ali que o maior número de óbitos e nem seu crescimento mais acelerado tem se dado.
Observa-se uma grande difusão do número absoluto de óbitos por territórios que apresentam precariedades urbanas e carência de infraestrutura. Quando analisamos as taxas de óbitos a cada 100 mil habitantes, mudam os distritos que apresentam as maiores taxas, mas ainda há uma concentração em lugares com precariedade urbana como nos distritos do centro. É necessário considerar dois fatores, o primeiro é que os distritos estão em semanas epidemiológicas diferentes, o que pode significar que um distrito com uma taxa que não é alarmante no momento, pode apresentar um crescimento muito acelerado com o tempo. O segundo é a densidade demográfica: há mais pessoas morando nas regiões periféricas da cidade do que nas regiões mais centrais, o que nos distrai da análise de territórios precários que podem ter o aumento do contágio de maneira a fugir do controle.
Mas não se pode afirmar que todos os territórios populares estão sofrendo os impactos da pandemia de maneira homogênea, muito menos que esses territórios são todos iguais. Existe uma grande diversidade de situações na cidade que faz com que a pandemia tenha impactos diferentes em cada região.
Fonte: Boletim Secretaria Municipal de Saúde, SMS-SP
Neste contexto, é fundamental uma política territorial de contenção e prevenção da pandemia alinhada às diversidades territoriais nas cidades brasileiras. O território precisa ser olhado como unidade de planejamento e gestão das políticas públicas emergenciais para o enfrentamento da crise sanitária. Olhar para a cidade de maneira homogênea não tem sido eficiente, pois transforma os números de casos e óbitos em médias que conduzem a políticas uniformes para territórios que são muito heterogêneos.
O próprio sistema montado pelo SUS já reconhece esta heterogeneidade territorial. Ao estabelecer a rede básica distribuída em UBSs que funcionam como a porta de entrada ao sistema único, é garantido que mesmo territórios sem infraestrutura hospitalar tenham acesso à saúde. Uma das figuras principais das UBSs e da atenção básica são os agentes comunitários de saúde, profissionais que atuam diretamente com a população tratando as especificidades dos territórios e comunidades que estão inseridos. No entanto, neste momento da pandemia, a rede de atenção básica de saúde está relegada, esquecida, realizando suas atividades por teleatendimento, o que dificulta muito o acompanhamento dos pacientes. Ouvimos apenas falar na ocupação e ampliação de leitos de UTI como ações para mitigar e controlar a crise, esquecendo a possibilidade e necessidade de utilizar os agentes de saúde para prevenção, triagem e tratamento precoce das famílias mais vulneráveis.
A visão territorial destes dois sistemas separadamente já sugere isso a qualquer observador atento: a distribuição territorial das UBSs é capilarizada e chega, mesmo que com muitas falhas, aos distritos mais periféricos, enquanto os leitos hospitalares e de UTI se concentram nos bairros centrais e mais ricos.
FONTE: Mapa da Desigualdade, Rede Nossa SP, 2019 e GeoSampa; elaboração Instituto Pólis
Fonte: DATASUS, CNES, SMS/SP, SES/SP e GeoSampa, elaboração Instituto Pólis
Os agentes de saúde têm conhecimento prévio das comunidades e acompanham os históricos médicos, tendo aptidão para identificar os grupos de risco, seja por idade ou por comorbidades. Também possuem melhores condições de buscar soluções de isolamento e tratamento precoce, medidas que poderiam evitar o encaminhamento de um maior número de pessoas aos – escassos e territorialmente concentrados – leitos de UTI. Esses profissionais possuem ainda um vínculo forte com as famílias presentes no território, desempenhando um papel informativo. Ao serem impedidos do contato pessoal, acabam abalando essa relação, abrindo brechas para o enfraquecimento da saúde coletiva. A estratégia do sistema de saúde de enfrentamento da pandemia tem concentrado seus recursos na ampliação de leitos, que têm sua devida importância, no entanto, ignoram as características e diversidades territoriais, não incluindo as UBSs e os agentes comunitários de saúde no plano de combate à covid-19.
Por outro lado, parte da sociedade que já atua nos territórios há muito tempo tem se mobilizado para o enfrentamento da pandemia diretamente nas comunidades. Muitas experiências de ação coletiva e solidária estão acontecendo no Brasil todo, mas é importante se debruçar sobre o caso de Paraisópolis, que nos sugere um caminho muito interessante: um olhar comunitário atento ao território que produz um cuidado direcionado às necessidades e especificidades daquela comunidade.
Paraisópolis, que disputa o lugar da favela mais populosa da cidade de São Paulo, com uma população de 74.732 pessoas (IBGE, 2019) e densidade populacional de 61 mil hab/Km2, através da associação de moradores organizou o enfrentamento da pandemia dentro da comunidade, com ações integradas. Sendo uma favela que já conta com uma organização comunitária estruturada e com apoio de organizações da sociedade civil conseguiu montar rapidamente uma estratégia em várias frentes.
Inicialmente foram eleitos 420 “presidentes de rua” – voluntários que são responsáveis por monitorar as famílias e possíveis sintomas de covid-19, assim como organizar doações, informar sobre a pandemia e os cuidados necessários para prevenção. Os presidentes estão capacitados para dar o direcionamento correto, encaminhando os sintomáticos para as 4 ambulâncias que atendem 24 horas com médicos e enfermeiros contratados pela comunidade. Foram ainda capacitados 240 moradores como socorristas que apoiam as 60 bases de emergência criadas com a presença de bombeiros civis. Para garantir o isolamento de pessoas com famílias numerosas, que moram em casas muito pequenas e que estejam com sintomas, foram criados espaços de quarentena em duas escolas públicas da região cedidas pelo governo do estado e gerenciados pela própria comunidade.
Mas estas ações comunitárias apresentaram bons resultados até agora?
O distrito de Vila Andrade, onde está inserida Paraisópolis, apesar de conter uma das maiores favelas de São Paulo apresentava, em 18 de maio, uma taxa de mortalidade por covid-19 de 30,6 por 100 mil habitantes, quase metade da taxa média da cidade (56,2), sendo que alguns distritos apresentam mais que o dobro. Em Paraisópolis observa-se uma taxa ainda menor (21,7) – quase um terço da média municipal. Apesar de representar 45,2% da população de todo o distrito (estimativa para 2020), com uma densidade demográfica 6 vezes maior e uma renda média 7 vezes menor, o número de óbitos ocasionados por covid-19 em Paraisópolis representa apenas 32% do total do distrito – menos de um terço, o que significa que as áreas mais ricas do distrito tem uma letalidade maior do que a da favela.
Estes dados parecem demonstrar a eficiência da atuação comunitária no enfrentamento à pandemia. A favela, apesar das condições de precariedade e vulnerabilidade, tem baixado a média de mortalidade do distrito como um todo.
É importante considerar que o percentual de idosos, grupo de risco à covid-19, nesta favela é menor que do distrito de Vila Andrade, que por sua vez é menor do que o do município. No entanto, mesmo realizando a devida ponderação, verificamos que as taxas corrigidas ainda mostram mortalidade menor em Paraisópolis do que no distrito para a população de mais de 60 anos. Pode-se afirmar, portanto, que uma população muito mais vulnerável que o do entorno protege melhor os seus idosos.
Se as suas iniciativas fossem apoiadas decididamente pelos governos, tanto através da atenção básica à saúde como com ações voltadas para garantir a segurança alimentar e outras despesas essenciais, com ampla testagem e busca ativa de novos casos e controle dos familiares, teríamos em Paraisópolis um bom exemplo para uma política pública de controle da pandemia que poderia ser replicada, como uma Política de Estado, em outros territórios vulneráveis.
Os autores deste artigo estão vinculados ao Instituto Pólis, uma organização da sociedade civil que atua na defesa do direito à cidade. A instituição tem mais de 30 anos de atuação com equipes multidisciplinares que participam ativamente do debate público em torno de questões sociais urbanas.