António Costa, José Sócrates e António Guterres, três premiês socialistas portugueses deste início do século que dividem diversas coisas em comum: todos foram pressionados a se demitir e também deixaram um importante legado nacional e internacional.
O mais longevo de todos – e o mais recente a apresentar sua demissão – foi Costa. A poucos dias de completar seu mandato de oito anos, o antigo prefeito de Lisboa já pode ser lembrado por ter sido o governante que tirou o país da depressão pós-troika, o resgate financeiro do Fundo Monetário Internacional (FMI), União Europeia e Banco Central Europeu que exigiu em troca um longo programa de austeridade e privatizações.
Desde 26 de novembro de 2015, quando o presidente conservador Aníbal Cavaco Silva o empossou a contragosto, Costa teve de compor maioria com dois partidos mais à esquerda do Partido Socialista (PS), o Bloco de Esquerda e o Partido Comunista Português (PCP). Apelidada como “geringonça” e, para muitos, predestinada a viver poucos meses, aguentou seis anos, durante os quais aumentou o salário mínimo nacional em 30% e diminuiu pela metade o desemprego: de 12,9% a 6,6%.
O governo atravessou episódios polêmicos, como os trágicos incêndios florestais de 2017. Mesmo assim, a imagem positiva do país ganhou força e se tornou um atrativo não só para start-ups do mundo inteiro, mas também para aposentados europeus e dezenas de milhares de brasileiros – a comunidade de brasileiros a residir legalmente em Portugal triplicou durante o mandato do socialista, chegando às atuais 240 mil pessoas.
Em 2021, o Bloco e o PCP não apoiaram o orçamento de Estado, por julgá-lo pouco progressista. A ruptura, no entanto, favoreceu Costa. Nas eleições antecipadas, ele obteve maioria absoluta e o país se tornou, em janeiro de 2022, um dos poucos governos socialistas dentro de uma Europa cada vez mais atiçada pela direita.
Paradoxalmente, essa ampla maioria criou mais instabilidade – houve dezenas de demissões no governo desde 2022 e um escândalo financeiro na companhia aérea TAP. Nesta terça-feira, com as buscas e apreensões da polícia em sua residência oficial por suspeitas de corrupção, Costa apresentou pedido de demissão. Nesse curto período, o premiê já pode presumir de ter promovido, junto ao primeiro-ministro socialista da Espanha, Pedro Sánchez, uma reforma do mercado europeu da eletricidade que deixa mais barata a energia para os dois países ibéricos.
Sócrates e a sombra do FMI
Como Costa, José Sócrates foi outro hábil e carismático político, com maioria absoluta entre 2005 e 2009. Muito bem relacionado com líderes latino-americanos, como o presidente brasileiro Lula e o venezuelano Hugo Chávez, Sócrates alçou a imagem internacional portuguesa, acolhendo grandes eventos, como o Tratado Europeu de Lisboa de 2007 (que ditava novas normas de funcionamento da União Europeia). Também foi anfitrião da primeira Cúpula UE-Brasil.
Reprodução / Wikicommons / Flickr
Costa, Sócrates e Guterres deixaram um importante legado nacional e internacional após ocupar chefia de Portugal
Sob seu governo, foram aprovados o casamento gay, a reforma na educação (para adaptá-la aos critérios da EU) e a modernização da burocracia do país, com a criação da Loja do Cidadão, que centraliza dezenas de serviços públicos em uma única agência.
Em setembro de 2009, Sócrates voltou a vencer as legislativas, mas perdeu a maioria absoluta no Parlamento, o que o obrigou a buscar apoio ora com a ala esquerda ora com a direita. Pouco depois, em meio à pressão financeira na Europa, que levaria aos resgates da Grécia e da Irlanda, Sócrates não teve o apoio de nenhum partido para aprovar o orçamento, e apresentou sua demissão em março de 2011.
Três meses mais tarde, a direita de Pedro Passos Coelho ganhou as legislativas e apelou à troika, iniciando um período de arrocho salarial e privatizações.
Guterres: a independência de Timor-Leste e o euro
O atual secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, atuou em dois governos socialistas, de 1995 a 2002, que foram, como os de Sócrates, ativos na cena internacional.
Um dos seus principais logros foi a mediação para que a comunidade internacional interviesse, em 1999, no conflito do Timor Leste, antiga colônia portuguesa que havia votado em favor da sua independência da Indonésia. As milícias pró-Indonésia não aceitaram o resultado do referendo e cometeram massacres contra a população civil. Timor-Leste obteve a sua soberania em 2002.
No plano econômico, seu governo foi marcado pelo sucesso na adoção do euro como moeda em Portugal, substituindo o antigo escudo. Na cadeira rotativa de presidente do Conselho Europeu, em 2000, Guterres foi responsável pela adoção da Agenda de Lisboa, que inclui o respeito ao meio ambiente e à tecnologia como vetores de desenvolvimento do bloco, e um dos responsáveis pela primeira cúpula UE-África.
Internamente, Portugal viveu um período de quase pleno emprego, marcado também pela criação do “rendimento mínimo garantido” para as famílias mais pobres. Em um país de forte tradição católica, a oposição acusou Guterres de ter ajudado a vitória do “não” no referendo de 1998 sobre a despenalização do aborto.
Depois de o PS perder as eleições municipais em dezembro de 2001, Guterres apresentou a sua demissão.