Texto publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo, 15 de dezembro de 2002.
Pinóquio está completando 120 anos (agora, 140), mas, convenhamos, só se comemoram 120 anos de um livro, de um autor, de alguém supostamente morto ou de um boneco quando a vontade de falar dele é imensa.
O problema é que Pinóquio, a marionete de madeira, não se resume ao nariz. A fábula escrita pelo falimentar jornalista Carlo Collodi resiste como um dos livros mais criadores de sentido feitos no século 19. Além da nova edição da Iluminuras, há pelo menos mais três integrais da obra no mercado brasileiro com impressões em 2002. E isso porque ainda não se sabe quando e com que força o filme de Roberto Benigni, inspirado no texto de Collodi, chegará ao Brasil – sua estreia na Itália rendeu 7,02 milhões de euros, superando o recordista O Senhor dos Anéis, que obteve 5,86 milhões de euros.
Mas voltemos à obra. Giorgio Manganelli, em Pinóquio: Um Livro Paralelo, pula escandalosa e maravilhosamente de palavra em palavra e mostra que “a escolha pelo pedaço de madeira parece de singular importância”.
Pinóquio, para Manganelli, é um ser que vive um conflito entre destinação e destino. Para quem não lembra, Pinóquio, antes de chegar às mãos do velho Gepeto, senhor apelidado de “Polentinha” e que usa peruca amarelinha, é um pedaço de lenha para queimar, que reage aos golpes de outro “vovô”, chamado mestre Cereja. Para Manganelli, o humilde Cereja, o primeiro a ouvir a “vozinha” do futuro Pinóquio, é uma espécie de destinatário errado, “cuja função é tornar o pedaço de madeira consciente do seu destino”.
É hora de abandonar Manganelli. Qual o destino de Pinóquio?
A vida de Pinóquio se divide entre ser bem comportado e se divertir, entre cumprir os deveres e descobrir o mundo, entre falar a verdade e mentir. Pinóquio, na verdade, quer e precisa deixar de ser uma marionete. E o que é uma marionete? Um boneco totalmente controlado por outro homem – Gepeto, no início do livro, conta a Cereja por que pretende criá-la: “pensei em fabricar sozinho uma linda marionete de madeira. Mas uma marionete maravilhosa, que saiba dançar, esgrimir e dar saltos mortais. Com essa marionete quero rodar o mundo, para conseguir um pedaço de pão e um copo de vinho”.
Sim, o pobre homem Gepeto, que vende o seu casaco para comprar um livro didático para Pinóquio, imagina-o como uma fonte de renda, capaz de lhe fornecer pão e vinho. Uma leitura radical e politicamente correta veria aí a expressão clara da exploração do trabalho – infantil, ainda por cima.
Hippopx
Fábula escrita por Carlo Collodi resiste como um dos livros mais criadores de sentido feitos no século 19
O destino de Pinóquio, portanto, é o de todo homem – se libertar desse jugo. Ele quer ser um menino, um menino de verdade, mas não passa de uma marionete. Se fosse, de cara, o tal bom menino, não haveria a transformação, ou metamorfose. Antes de adotar o bom comportamento, é preciso conhecer o mundo – seja na companhia dos maus e perigosos alunos, seja se arriscando com o “Gato e a Raposa”, seja nas asas de uma pomba – Pinóquio voa sobre o mundo, o que não é pouco.
Pinóquio, nesse sentido, não é uma história infantil a se analisar apenas psicanaliticamente, mas também no seu aspecto político – num sentido lato, e não na comparação direta com um mentiroso daqui, outro de lá. Principalmente porque, desde o começo, Pinóquio tem plena consciência de quando está agindo de acordo com as regras e quando está as esgarçando ou mesmo transgredindo. A figura que representa sua consciência é, claro, o Grilo-Falante.
Pinóquio sabe que, para expandir seu conhecimento do mundo, para provar novas experiências, precisa, num certo sentido, se livrar da repressão do estabelecido – e mata, logo de cara, o Grilo-Falante. Seus atos seguem conscientes (e o sinal evidente disso é o ressurgimento do Grilo) e fruto de uma decisão clara entre os dois polos.
Pinóquio não se contenta com o mundo que Gepeto, seu pai e também senhor, lhe oferece. Quando mente (e como mente), procura esconder não só os atos, mas também os resultados negativos de sua ousadia. Natural, diante da repressão. As Aventuras de Pinóquio, assim, e só elas, é que realizam o destino daquele pedaço de madeira, fruto da natureza, portanto: o de se civilizar e poder olhar para o velho brinquedo com um certo desdém depois de superar suas primeiras limitações – e garantir uma relativa e necessária independência em relação a Gepeto.
O resultado dessa leitura um tanto livre e descuidada é a conclusão de que Pinóquio tem muito a ensinar não apenas aos meninos e meninas que encontram nesse livro de uma atualização fantástica dos contos de fadas, mas também a todos aqueles que se paralisam e que não se permitem nenhum risco, nenhuma ousadia, nenhuma aventura no seu sentido mais real e verdadeiro.