O texto ‘Os injustiçados, arrependidos e resistentes: quando o passado é carregado de opróbrio’, de Maria Cláudia Badan Ribeiro, está dividido em três partes.
Novamente a criminalização (parte dois)
Ressalvas importantes (parte três)
Sou grata a Isa Albuquerque pelo filme Codinome Clemente, emocionante pela força que tem. Isa conduziu o filme de uma perspectiva militante, escolhendo um companheiro de dentro ou “quase de fora” de seus companheiros de estrada.
Assim como Isa trouxe às telas de cinema o referido documentário, abrindo uma discussão sobre as ações armadas contra a ditadura brasileira (1964-1985), o livro de Lucas Ferraz, Os Injustiçados, pretende revelar o que se convencionou chamar de “justiçamentos” ocorridos no âmbito da esquerda revolucionária do país.
Isa mostrou em seu filme o calor do combate, seus caminhos e descaminhos, a história de um homem de ação. Uma narrativa cinematográfica que aborda esse passado, diferente da historiografia militante ponderada, descarnada, no ritmo da costumeira transição pactuada ou do interesse político-partidário.
Todos escrevem para mostrar seu lado bom, para jactar-se dos aspectos gloriosos da luta em discursos sempre muito harmoniosos. Isa inseriu no filme o lado impiedoso da luta, aquele que esteve presente na assimetria da luta entre vida e morte.
Não perguntei à cineasta se ela pensou na figura do herói trágico, mas sua narrativa não serviu à dicotomia pura e simples de heróis versus vilões, de culpados versus inocentes. A narrativa transparece numa teia muito complexa. Por que complexa é a vida. Porque complexa foi a existência de um militante revolucionário.
Isa soube recuperar as tensões, as contradições e os impasses dessa luta – assim como seu discurso de derrota – mostrando, sem ser panfletária, a violência como um problema político.
Mas em que momento a violência legítima se converte em violência pura? Muito já se discutiu sobre isso. A violência legítima se funda em alguns princípios. Tome-se os revolucionários, por exemplo. Pouca gente se pergunta quais eram os valores daquela esquerda. A moral revolucionária exigia: lutar até o último homem.
A razão revolucionária se auto justifica? Se sim, em que condições ela assim procede? Quais os aspectos que feriram essa moral?
A violência revolucionária, que naquele contexto era um instrumento de mudança, hoje aparece como uma “recordação vergonhosa”. Empregá-la teria sido um erro. O “erro mais fascinante de uma geração” foi assim que Fernando Gabeira se referiu à experiência armada.
Frei Betto foi mais generoso ao dizer: “somos muito tímidos em matéria de anos de chumbo no Brasil”. Eram os anos de 1990 e o início da criação da Lei de Mortos e Desaparecidos. Betto ajudava a saber. Gabeira enterrava a experiência.
O Brasil lida mal com sua história, e apagou, ao sabor dos cargos e do alarde da imprensa, esta identidade revolucionária que um dia existiu em nosso país, desalojando do cenário as alternativas frontais de luta. Dizem ser acontecimentos fracassados, uma luta esgotada e soterrada pela história, ou então, fruto da deterioração física e psicológica do militante.
Não desconsidero a sobrecarga emocional de quem esteve na linha de frente, nem a desestruturação psicológica de uns tantos, mas esse discurso era o da ditadura, para a qual tratava-se de filhos desajustados ou das más companhias que os motivaram a partir para a guerra.
O mundo daquela época estava em convulsão. A confiança entre os pares dos que optaram pela guerrilha constituía a condição de sobrevivência física do militante. Um erro de avaliação seria mortal. Numa organização clandestina submetida a um combate brutal, criavam-se leis próprias, impostas depois pelas circunstâncias das ações. Como disse nosso amigo Nelson Rodrigues Filho: “é o caso da guerra. Seu inimigo está lá. Você mata ou morre”.
Os limites da violência são estabelecidos pelas estratégias que a própria guerra determina. Um militante afirmou muito honestamente: “era idealismo achar que as pessoas podiam parar para refletir sobre o processo que estavam vivendo, as atitudes eram tomadas em relação às necessidades políticas”.
A violência não é um fato absoluto, ela faz parte da trama histórica, dos princípios que a regem e determinam as lutas travadas. Deve ser considerada como parte do contexto vivo e das suas contingências. Ela não é uma opção ética de índole individual, é mais uma questão social de causa e efeito.
O que dizia, por exemplo, o mini Manual do Guerrilheiro Urbano, escrito por Carlos Marighella, sobre o justiçamento, e que ganhou o mundo em versões que vão do basco ao coreano? Que ele deveria ser realizado apenas por um tribunal revolucionário convocado pelo Comando Nacional, sendo uma ação secreta envolvendo o menor número de pessoas e realizado na mais absoluta clandestinidade.
Do ponto de vista moral, o guerrilheiro urbano detinha, para Marighella, uma superioridade indiscutível. “Graças a ela, o guerrilheiro urbano pode cumprir seu dever principal, que é atacar e sobreviver. É melhor errar agindo, do que nada fazer para não errar. Sem iniciativa não há guerrilha urbana”.
Como ele mesmo escreveu: “aqueles que se afastam e enfraquecem a luta são demissionários. Como se sabe, a defensiva é a morte para nós, que somos inferiores ao inimigo em potência de fogo”.
Sobre o justiçamento, assinalou:
“O justiçamento é a morte de um espião norte-americano, de um agente da ditadura, de um policial torturador, de uma personalidade fascista do governo envolvido em crimes e perseguições de patriotas, de um dedo-duro, delator, informante da polícia ou provocador policial. Aqueles que vão à polícia por iniciativa própria para fazer denúncia e acusações, fornecer pistas e fazer reconhecimento, quando agarrados pelo guerrilheiro urbano devem também ser justiçados. O justiçamento é uma ação secreta, com a participação do menor número possível de guerrilheiros urbanos. Em muitos casos para o justiçamento basta um franco atirador, paciente, solitário e desconhecido, que age na mais absoluta clandestinidade e com o maior sangue frio. O espião que for descoberto dentro da organização deve ser castigado com a morte. O mesmo acontecendo aos que desertam e vão delatar. A pena de justiçamento só poderá ser aplicada por um tribunal revolucionário convocado pelo Comando Nacional. O infrator poderá ou não estar presente ou tomar conhecimento do julgamento, conforme as circunstâncias”.
Na Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares), instruções análogas também existiam. Os militantes da organização que violassem seus princípios, segundo a gravidade dos fatos, estariam sujeitos a: 1. censura verbal ou escrita, 2. destituição do cargo, 3. suspensão de direitos, 4. desligamento, 5. expulsão, 6. justiçamento. (AEL-BNM, n° 66 VAR-Palmares. Sobre as punições).
O justiçamento saiu então do papel e foi posto em prática pelas organizações armadas, em situações dramáticas e muito específicas.
Inaugurava-se a época dos chamados “cachorros”, os seduzidos pelas promessas apresentadas pela repressão, de não serem presos, não responderem a processos, de não irem parar na vala comum dos chamados “terroristas”. Colaboração deliberada e às vezes sem nenhum grito de dor nas salas de tortura. Há uma grande diferença entre um corpo torturado que trai e aquele que se entrega à ignominiosa tarefa de ajudar a matar.
O mundo estava em luta, ganhava consistência o movimento anti-colonização e terceiro mundista unido pela libertação dos povos. Cuba, Argélia, Vietnã, Moçambique, Angola. A Organização Latino-Americana de Solidariedade (OLAS) representou a guinada armada na América Latina.
Nas cartas cifradas trocadas por militantes, Cuba era definida como a “irmã” e Argel como a “prima”. “Fui me encontrar com minha irmã, que passa muito bem”. O dinheiro para a revolução chegava sob a forma de “obras completas”.
Sempre me perguntei o que levou cada um(a) dos meus entrevistados(as) a aderir à guerrilha. As motivações eram variadas, mas todos fizeram uma entrega para lá de generosa. Viver a guerrilha era ter, como Ilda da Silva Gomes, uma vida provisória e uma casa “feita de caixotes”, onde o melhor item da moradia era, como ela me disse, sua cama.
Era viver sem tempo e em aparelhos franciscanos. Era comer o macarrão com sardinha todos os dias.
Militantes não são intrinsecamente assassinos. A história de Márcio é produto de uma situação de cerco e isolamento, desespero, angústia e de sentimentos que nem sempre passam pela racionalidade. Ou passam, e isso é importante que se diga: passam pela racionalidade da luta. Não tecerei comentários a favor ou contra Márcio.
Carlos Eugênio jamais se referiu a ele como traidor. Há pelo menos duas versões a respeito de seu justiçamento, entre as quais, a de que sua morte fora encomendada em 1968 por Marquito (Marco Antônio Bráz de Carvalho), três anos antes. Não sei quão irreverente era Márcio, mas talvez sua maneira de agir tenha rompido o pacto militante da confiança, da responsabilidade em meio a uma luta desigual.
Luta feroz contra uma ditadura feroz, com cara de legalidade, financiada por empresas e com a ajuda do Departamento de Estado norte-americano, que elaborava relatórios mensais de “análise psicossocial” da luta em curso na América Latina.
A ditadura brasileira contou com instrutores argelinos, militares formados na Escola do Panamá, coronéis salazaristas trazidos ao Brasil pelo então deputado Flávio Marcílio. Tratava-se, neste caso, do coronel Hermes Araújo de Oliveira, do Exército português e um dos maiores especialistas em guerra subversiva, convidado para a realização de algumas conferências no estado do Ceará, São Paulo e Rio de Janeiro. (AEL-BNM. Anexo 176, Doc. 04, p. 306, Tribuna do Ceará, 14/08/72).
O Brasil consta como tendo participado da Operação Condor I e da Operação Condor II, quando foram enviados à Argentina, como “observadores”, um coronel e um major encarregados de reprimir a guerrilha do Araguaia. A Comissão Nacional da Verdade (CNV) não conseguiu concluir se o Brasil participou da Operação Condor III, que tinha mortes agendadas.
Seus agentes podem não ter matado, mas deixaram matar e sequestrar chilenos, argentinos e uruguaios em solo brasileiro. Revelando até então o que não se sabia, o jornalista Eduardo Reina, em pesquisa da maior importância, tratou dos casos de sequestro e desaparecimento de 19 crianças e adolescentes ocorridos durante a ditadura, identificando 11 casos ligados à Guerrilha do Araguaia.
Em 2013, quando realizava pesquisa na França, estive presente num debate sobre Exílios no Feminino na presença de Tzvetan Todorov. Já havia lido Em face do Extremo há alguns anos, e me recordava de um argumento central de seu livro, a saber, o de que não havia ação humana destituída de uma escolha moral. (Todorov, Tzvetan. Em face do extremo; tradução de Egon de Oliveira Rangel e Enid Dobránszky; Campinas, SP: Papirus, 1995).
Analisando os campos de concentração, Todorov defendia que esses centros de extermínio não representavam o retorno a um estado de barbárie, eram antes um espelho de atitudes presentes na própria sociedade. Pareciam importar pouco na análise de Todorov os atos de sobrevivência e em que contexto eles se deram. Como o autor se perguntava, poderia ser julgado aquele que no campo furtava alimentos?
Adolfo Kaminsky, o maior falsificador de documentos da Segunda Guerra Mundial, ele mesmo internado no campo de Drancy e salvo pela Lista de Schindler, perdia seu sono com sua farta atividade ilegal? Absolutamente. Como ele me disse: “se eu parasse de falsificar, centenas de crianças judias morreriam”. (Entrevista à autora, Paris, 26/06/2013).
Sob as ações concretas da repressão, a militância atuou em situações-limite, é verdade, movimentando-se numa arena de conflitos, de acordo tanto com estratégias e manobras assumidas contra a ditadura militar quanto com as próprias fissuras resultantes do discurso autoritário. Criar identidades sem negações e contradições foi uma tentativa da política repressiva de Estado. Não da militância. Nunca o papel de amante serviu tão bem às intenções da luta armada, como no caso de uma distinta professora universitária de São Paulo, com mais de 30 anos de idade, mulher solteira e independente para os padrões da época, que recebia o delegado Sérgio Paranhos Fleury em sua casa e, ao mesmo tempo, ajudava a retirar perseguidos políticos do país ou a abrigar estudantes após as passeatas.
As fronteiras porosas da época ultrapassaram o combate meramente estético, como afirmou José Celso Martinez Corrêa:
“Tereza Bastos atuou durante muitos anos no [Teatro] Oficina. Uma pessoa maravilhosa! Ela dormiu com o censor e na cama dele ia fazendo cortes. Revolução colonial? Não, vamos colocar tropical e fez, reescreveu [a peça] na cama. Eu acho isso um ato de heroísmo, eu tenho uma admiração enorme por ela e por pessoas que são capazes de atos extremos”. (Depoimento de Zé Celso Corrêa, no filme Travessia, de João Batista de Andrade, 2009).
Outro caso foi o de uma mãe que, para proteger os filhos – que estavam presos no DOPS – iniciou um relacionamento com um delegado. Entretanto, continuava a se encontrar com seus companheiros de organização, acarretando o afastamento do delegado de suas funções, que àquela altura, estava sendo cúmplice de suas atividades de militância e almejava ser um “bom delegado”. Também conhecida ficou a história de Tia Lenita, autora de histórias infantis publicadas pela Folha de S. Paulo, que manteve um caso com um investigador do DOPS e repassava informações para a Ação Libertadora Nacional (ALN):
“Scatena era investigador eficiente da equipe de Fleury. Galã, conquistara Tia Lenita, autora de histórias para crianças, aos domingos na Folha de S. Paulo. Se deitava com ela ao sair dos plantões. Fleury estourou diversos aparelhos e os encontrou vazios. Desconfiando de infiltração, grampeou telefones. Prendeu Lenita na saída de casa, logo lhe quebrou uma costela, prendeu Scatena, não o torturou, abriu processo, o expulsou da polícia. Víamos Tia Lenita passar para o banho de sol, pálida, nem feia, nem bonita, nos seus quarenta anos. As companheiras Amélia, Walkiria, Rioko, lhe pediam a verdade, Lenita lhes falou de um amigo (ou namorado) de organização, para quem telefonava, também certos dias, na inocência”. (Santos, Joel Rufino dos. Assim foi (se me parece): livros, polêmicas e alguma memória. Rio de Janeiro: Rocco, 2008, p. 85-86)
Dois exemplos que chegaram a atingir o paroxismo: trata-se do caso de duas mulheres presas em São Paulo. Uma era açougueira e foi detida em razão de uma denúncia de que distribuía material considerado “subversivo”. E outra, passista de uma escola de samba paulista. Se a primeira embrulhou sem perceber a carne numa folha do jornal O Movimento, a segunda se apaixonou por um militante, apesar de viver com um escrivão de polícia. Os policiais quiseram puni-la moral e fisicamente por ela ter traído seu colega de profissão. Assim, Madalena amargou dias de prisão e tortura no DOI-Codi.
A resistência, como assinalou Jacques Sémelin, é uma ruptura individual, mas que só consegue se exprimir coletivamente. Ela exibe muitas camadas, e é neste nível de ambiguidade que o direito à revolução deve ser colocado. Não existe aí um “não” fundamental. Marilena Chauí, em trabalho hoje clássico, também tratou do caráter ambíguo dos objetos sociais, capazes de conformismo ao resistir e de resistência ao se conformar” (Chauí, Marilena. Conformismo e Resistência. 2ª ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987, p. 124) / (Sémelin, Jacques. Sans armes face à Hitler. La résistance civile en Europe (1939-1943), Paris: Payot, Collection Histoire, 1989).
Uma das funções da guerra é justamente alterar os sistemas de valores, deslocar sensibilidades, transgredir o interdito ou o proibido. Ela é o momento da improvisação e da transgressão dos papéis constituídos. Um homem que vai à guerra não é o mesmo que vive a paz.
Como, mesmo face o risco da morte, homens mantiveram a esperança? E como expressaram suas diferentes maneiras de sobreviver? Um exemplo disso está no romance Vida e Destino, de Vassili Grossman, mais especificamente num diálogo entre um padre e um comunista internados num campo de concentração. Ambos se dedicavam à construção de uma câmara de gás que os levaria à morte. O padre, esperando o perdão divino, dava continuidade ao seu serviço. O comunista, revoltando-se e abandonando o canteiro de obras disse: “eu sou livre! Eu estou construindo uma câmara de gás e sou responsável pela minha morte. Eu posso dizer não. Que força pode me impedir se eu encontro em mim a força de dizer não à morte?” (Grossman, Vassili. Vida e Destino. Trad. Irineu Franco Perpétuo. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2014).
Wikimedia Commons
Grupo de guerrilheiros no Araguaia durante a ditadura militar brasileira
Coloca-se aqui uma questão de escala. O campo de concentração derrotou ambos. Quais atitudes deram margem à sobrevivência? O que elas implicaram? Quem resistiu melhor à morte? Quem ajudou a provocá-la?
O resistente, o traidor e o “cachorro” lutavam igualmente pela sobrevivência? De que lado esta balança pesou mais na elaboração de um inventário de perdas e ganhos da ditadura? Acho que é importante considerar as discrepâncias dos padrões éticos entre militantes combatentes e repressores considerando-se a confiança que se forjava na convivência da luta e destacando-se o destemor daqueles que enfrentaram as brutalidades do regime, para além da ideia usual de imolação, martírio ou sacrifício. A militância jamais apelou para a tortura, e mesmo que tenha reproduzido lógicas exógenas de controle interno, não dispunha de recursos equivalentes aos do Estado ditatorial brasileiro.
O justiçamento como prática pôde apenas ser admitido na sociedade então como um desvio natural do curso dos acontecimentos e como sectarismo dos grupos armados. Mas, qual era o curso normal dos acontecimentos naquele Brasil ditatorial de então? Para a ditadura, todos podiam ser inimigos da Pátria ou maus brasileiros.
Era o Brasil do Ame-o ou deixe-o com seus atos ensaiados, o exagero de seu oficialismo, a teatralização de suas proibições, a celebração do pânico e a “convocação” para que se escolhesse um lado – tudo isso fazia parte de seu modus operandi. Lembro-me de Clemente dizer que desde o início os militantes já atuavam sob situação de cerco, mas ele se dizia feliz por não ter cumprido nenhuma ordem da ditadura. E, evocando a Pequena Serenata Diurna, de Silvio Rodriguez, disse em Codinome Clemente: “sou feliz, sou um homem feliz. E quero que me perdoem por este dia os mortos de minha felicidade”.
Parcela desses “cachorros” pode ter até mudado de vida, mas isso não apaga o que eles fizeram no passado. As zonas cinzentas na história apontadas por Primo Levi não são capazes de humanizar traidores. No episódio de retratação pública de militantes, dos chamados “ arrependidos”, o que eles não contam é que entregaram pessoas para a morte. O que eles renegam publicamente é a percepção da ditadura como “espaço do terror”, numa tentativa de se escusar do que eles próprios fizeram, quando na realidade eles também foram a peça chave para que o terror se perpetuasse. Infiltraram-se, deram informações aos repressores, cumpriram pontos de encontro, “ajudaram” nos interrogatórios.
Há diferenças entre o fraquejar sob tortura e o colaborar de forma ostensiva. O que reverbera é a voz incômoda da covardia daqueles que minimizam ou negam suas responsabilidades. Vigora na atualidade uma compreensão muito humana de suas atitudes, retirando-as de um contexto de guerra, em que se operava segundo uma lógica diferente. Os “arrependidos” são tratados como seres humanos que apenas “falharam”. Compreensível até aí, mas eles negaram essa humanidade aos outros, ao serem cúmplices de suas mortes. Tornou-se quase um lugar comum afirmar que se há algum culpado nessa história toda foi a política repressiva do Estado, que reduzia pessoas a traidores e agentes a seu favor, destruindo o que havia de mais fraterno na militância. Ouvi de um militante: “sobre a traição dos canalhas que foram para a televisão, respeito somente o Massafumi pela autocrítica que fez – o suicídio – e que Lungaretti e os outros também deveriam ter feito, se lhes restasse um lampejo de consciência”.
A militância teve suas razões, em geral desconsideradas. Se o justiçamento ocorreu por presunção de culpa, Lucas Ferraz também absolveu as vítimas, baseando-se na presunção de inocência. Sua narrativa pretende ser objetiva, clara, apontando erros. Mas, como o jornalista Marcelo Godoy escreveu em sua matéria para o jornal O Estado de São Paulo, “o título é mesmo uma sentença sobre cada vítima da violência revolucionária. O autor [Lucas Ferraz] lembra que os executores tinham diante de si inocentes”.
Mas Ferraz situa sob o mesmo título de “Injustiçados”, os nomes de Henning Albert Boilesen, Charles Chandler e Manuel Henrique de Oliveira, afirmando que para além dos personagens centrais de seu livro – quatro “justiceiros” – “outros episódios de execução” – de torturadores abatidos pela guerrilha se entrelaçam e ressoam, segundo o autor, em seus destinos, devendo, portanto, ser abordados. Sua clareza não chegou a ser como a do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, quando observou, a respeito da morte de Henning Albert Boilesen no documentário Cidadão Boilesen, de Chaim Litewski, “era um a menos”. A morte de Boilesen para a FIESP representou uma “inominável covardia”.
Documento escrito pela ALN após o justiçamento de Boilesen, que circulou internamente na organização, deixou claro porque Boilesen não podia entrar no rol dos injustiçados:
“As pessoas em geral não abandonam o seu carro e saem correndo em fuga pelo simples fato de um carro fechar à frente (…). É que a maioria das pessoas não carrega consigo a culpa de financiar a Operação Bandeirantes e premiar verdugos. Não tem por trás de si inumeráveis assassinatos realizados com sadismo, não tem por trás de si, torturas. Mas quando um homem tem toda essa carga, um carro que pára à frente é o horizonte esperado. O Presidente do Grupo Ultra, entusiasta da “revolução de 31 de março”, dirigia seu galaxie azul uma manhã destas e encontrou a justiça revolucionária. Não lhe restou mais alternativas. O justiçamento de Boilesen significa apenas a execução de um inimigo e carrasco, como ele muitos policiais-torturadores, muitos políticos burgueses que louvam a ditadura, muitos exploradores deveriam encontrar o mesmo fim. A morte de Boilesen é um exemplo aos trabalhadores porque mostra contra que classe se luta e que fim deve ter a exploração. O comando que efetuou o justiçamento trazia o nome de Devanir José de Carvalho, o Henrique. O que demonstra que quando cai um revolucionário surge outros para empunhar suas armas. Quanto ao empresário justiçado, este corporificava toda a vinculação tortura-burguesia-governo, corporificando também, dessa forma, o alvo de combate a que Henrique dedicara a sua vida. Henrique, sua coragem, austeridade, sua firmeza na opção de vida serve como exemplo para os revolucionários de todas as organizações. Podemos dizer que de nada adianta desgastar as forças revolucionárias em atos isolados, mas é preciso dizer também que ao jogarmos todo o peso dos nossos esforços naquilo que achamos ser o fundamental hoje, formar a consciência e a organização das massas proletárias, devemos fazê-lo com a combatividade com que Henrique fazia aquilo que pensava ser o mais correto. Tão diferente essas duas mortes! Tão diferente esses homens! Um vivera com medo da justiça revolucionária, o outro morrera combatendo pela causa da revolução”. (AEL-BNM, processo n° 55).
A morte de Boilesen foi planejada pela ALN num segundo momento. A intenção primeira era sequestrá-lo para trocá-lo por presos políticos, entre eles Devanir José de Carvalho. No Jornal Venceremos de maio de 1971, a organização relatou o ocorrido:
“É bom lembrar que o canalha Boilesen poderia ser sequestrado pelos guerrilheiros e depois torturado até a morte. Mas, a tortura não é um método revolucionário de eliminação de exploradores e fascistas. Esses métodos são dignos apenas das ditaduras gorilas, como a brasileira. Os guerrilheiros e revolucionários de fato executam pelo método digno, mesmo que o inimigo seja um canalha como Boilesen, que assistia pessoalmente às sessões de tortura na OBAN. Assim como nessa ação, a toda atitude na guerra injusta da ditadura, os guerrilheiros responderão com outra na guerra justa que lhe impõem. Os grandes capitalistas (industriais, empresários, banqueiros, etc.) quando convidados pelos gorilas a colaborar com a repressão, devem pensar duas vezes antes de fazê-lo. Isso é um conselho aos colaboracionistas “em potencial”.
“O livro Os Injustiçados não é um estudo sobre a violência revolucionária”, continua Godoy, citando March Bloch – que detestava historiadores que “julgam no lugar de compreender” – e Jacques Le Gof, para quem o historiador se realizava como um moralista e como um justo.
Ivan Seixas, irmão e companheiro de Clemente pela vida toda, foi muito feliz numa homenagem em memória de Márcio Leite de Toledo havida no Memorial da Resistência, quando disse: “eu estava reconduzindo Márcio a algum lugar. Porque ele não estava na galeria dos traidores, nem na galeria dos heróis. Estava em lugar nenhum”.
Quais comportamentos garantiram a vida de um militante? O que representou a obediência ou a transgressão diante de um sistema autoritário? Em que situações inexistem escolhas, e o ser humano se curva apenas às circunstâncias? Todorov defendia, porém, a existência de uma estreita relação entre as ações cotidianas e aquelas tomadas em situações extremas. Para ele, a moralidade das primeiras era a bússola das segundas. As rupturas não se davam então, segundo ele, em função da mudança de escala.
No caso da ditadura militar brasileira, a violência de Estado legitimou a violência armada. E, a menos que queiramos jogar fora a experiência histórica revolucionária, a escala é muito importante. Falar em números não expressa totalmente a capacidade cirúrgica do golpe de Estado brasileiro. Ele levou ao banco dos réus 7.367 nomes, empregou 310 tipos diferentes de tortura, perseguiu sindicatos e organizações da sociedade civil, realizou detenções ilegais e execução sumária de oponentes, inaugurou a prática do desaparecimento forçado e a ocultação de cadáveres, foi responsável por chacinas. Em síntese, estimulou uma violência em cadeia, produzindo 434 mortos e desaparecidos, segundo dados oficiais do próprio Estado. A ditadura praticou violência contra crianças e adolescentes, desvirtuou funções institucionais de órgãos do governo, restringiu a concessão de passaportes, realizou monitoramento de brasileiros no exterior. Plantou na imprensa falsas versões de suicídios, adulterou laudos cadavéricos, lançou mão de decretos secretos, impôs uma rígida censura à mídia e às manifestações culturais, aprovou a pena de morte e internava suas vítimas em Manicômios Judiciários para dissimular sua violência infame. Ao menos 8 mil indígenas foram mortos pela ditadura.
O regime então estabelecido impôs o arrocho salarial. Homens se jogavam do Viaduto do Chá porque não tinham como sustentar suas famílias. Uma ditadura da morte e da fome, que produziu o “homem gabiru” e censurou o noticiário sobre a epidemia de meningite no Brasil. (Cf. Barata, Rita de Cássia Barradas. Meningite: uma doença sob censura? São Paulo: Cortez, 1988). O regime ditatorial aposentou compulsoriamente intelectuais, professores e cientistas, invadiu universidades, fechou o Congresso Nacional, cassou juízes do Supremo Tribunal Federal (STF), estabeleceu regras eleitorais de seu interesse, colocou partidos políticos na ilegalidade etc.
Talvez por igualarmos estranhamente essa luta às suas consequências, contribuímos para que essa experiência seja entendida no bojo de uma axiologia abstrata e a-histórica, retirando os nossos revolucionários dos livros de história. Aliás, quando foi que eles neles ingressaram?
A imprensa colaborou para isso com seus grandes “furos”, além dos carros da Folha de S. Paulo, que prendiam militantes. Nas manchetes, homens eram retratados como se fossem bichos. Uma época chamada de “tempos de cólera”, em que se dizia que não era o Estado que matava, e sim os militantes. A jornalista Ana Estela de Sousa Pinto se debruçou sobre a colaboração prestada pela Folha à ditadura. Como ela afirmou:
“ (…) quando o golpe foi desfechado, a Folha de S. Paulo o apoiou, como praticamente toda a grande imprensa. Com manchetes estridentes, vocabulário que reproduzia o das forças policiais e destaque às ações da repressão, as vendas explodiram. Na redação, militantes de esquerda foram substituídos por jornalistas ligados à polícia, alguns com cargo de delegado ou patente de major ou capitão da PM”.
Com fama de “jornal” sórdido, na expressão de Cláudio Abramo, “a Folha da Tarde dava credibilidade a versões de que colaborava com as forças de repressão (…). O jornal foi acusado de ter sido o único a publicar a fuga de Eduardo Collen Leite, o “Bacuri”, quando o dirigente da ALN continuava vivo na prisão – a repressão usava como artifício divulgar falsas fugas para encobrir mortes sob tortura. A FT também foi acusada de ter “antecipado” sozinha a morte do militante Joaquim Alencar de Seixas, conhecido como “Roque” (…). Desde 1968, praticava a autocensura e acatava instruções repassadas diariamente pela repressão. [Carlos] Lamarca era um dos alvos preferidos da agressividade editorial da Folha da Tarde, que o chamava de ‘louco’”.
Nas palavras de Carlos Eugênio Paz, “nas emboscadas da repressão havia carros da Folha, como havia acontecido com caminhões da Ultragaz. Usava-se o carro das empresas para montar um cenário em que o cerco passasse despercebido”.
Houve mesmo a ideia de sequestrar o Sr. Frias para trocá-lo por prisioneiros. “A resposta do empresário veio na edição seguinte ao primeiro ataque, no editorial intitulado BANDITISMO em maiúsculas publicado na capa. O texto assinado pelo próprio Octavio Frias, recriminava a luta armada e avisava que a Folha não se intimidaria com a ameaça”. Carlos Caldeira, sócio do jornal era amigo íntimo do Coronel Erasmo Dias, e depois dos ataques das organizações armadas aos carros da Folha, a família Frias passou a ser escoltada por policiais do DOPS. (Pinto, Ana Estela de Sousa. Folha. São Paulo: Publifolha, 2012. p. 7 -70).
Enquanto isso os militantes tentavam furar o cerco da censura, como numa ocasião em que conseguiram publicar um anúncio curioso no Diário Popular: “Organização ALINA – Especialista em caça aos gorilas, macacos e congêneres de menor porte”.
(*) Maria Cláudia Badan Ribeiro é historiadora e viúva de Carlos Eugênio Paz (Clemente). Autora de Mulheres na Luta Armada: protagonismo feminino na Ação Libertadora Nacional (ALN) (Alameda Editorial).
(*) Leia a parte dois e três do texto de Maria Cláudia Badan Ribeiro.