Tendo em conta o primeiro turno da eleição presidencial do Brasil, a América Latina olha para o futuro próximo do vizinho com esperança, mas também com um sentimento de incerteza. E não há uma, mas várias razões para estas percepções que têm varrido a região desde que os resultados do primeiro turno foram anunciados.
Por um lado, a votação ganha por Luiz Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores, que praticamente chegou perto de uma vitória definitiva na primeira volta, mostra que a criminalização mediática do líder trabalhista, dos seus colaboradores próximos e do seu partido não alcançou o objetivo de o enterrar politicamente. Com a vitória do petista, os meios de comunicação social parecem hoje menos poderosos, e a estratégia de acusação que têm aplicado em toda a América Latina contra líderes progressistas não foi tão bem sucedida como esperavam.
A judicialização de líderes não garante o establishment: acabar com a esquerda.
Tal vitória de Lula tranquiliza a região, porque projeta que as lutas sociais não se perderão através da vingança dos grupos de poder. Após anos de criminalização, perseguição, blasfémia e prisão, Lula ainda lá está.
O Brasil deu ao mundo um exemplo de perseverança dos seus líderes e da capacidade de se recuperar das piores armadilhas que até incluíram a prisão no seu repertório de perseguição. Uma tal “ressurreição” não é uma coisa qualquer para um líder.
Mas esta esperança não é a única sensação que percorre na região.
Com o resultado de 2 de outubro, a América Latina vive um sentimento de vertigem devido ao bom resultado alcançado pelo atual presidente, Jair Bolsonaro. Não só inesperado, mas também muito revelador devido ao fato de ter estado longe da reeleição pretendida, mas muito próximo do poder político e factual.
E não estamos falando apenas dos resultados parlamentares e da surpreendente participação eleitoral de Bolsonaro (43,2%), muito superior ao esperado pelas pesquisas e pelo ambiente político. Acima de tudo, estamos especulando sobre a eficácia com que o “populismo de direita” tem vindo a esculpir o território popular que a esquerda tinha monopolizado durante várias décadas.
A direita populista está fora da garrafa, porque já não está enclausurada nas classes média e alta, mas criou raízes nas classes populares, e a partir daí faz política.
A direita populista perde, mas se fortalece
Bolsonaro não foi a estas eleições representando as elites, os partidos tradicionais ou os empórios mediáticos. O atual presidente do Brasil, no meio de tantas declarações loucas, permaneceu coerente na sua ordem discursiva e hoje é o principal representante da “antipatia ao establishment”, um lugar natural para a esquerda e o progressismo.
Com o resultado, Bolsonaro, embora matematicamente muito difícil para a segunda rodada, ainda está vivo.
Não só por uma votação que parece mais esquiva, mas também pelo futuro político, graças sobretudo ao apoio que conseguiu cimentar nos setores populares, que hoje dão destaque ao bolsonarismo com os ganhos legislativos e regionais alcançados em 2 de outubro.
O “populismo de direita” como categoria sociológica infiltrou-se em muitos setores populares, não só no Brasil, mas também na América Latina.
Assim, a preocupação da esquerda latino-americana não é apenas o Brasil ou um Bolsonaro que provavelmente veremos perder em 30 de Outubro, mas a eficácia dos setores conservadores na implementação de uma estratégia que não só consegue seguidores em todo o lado, como provou que sabe como mantê-los.
Como dissemos, isto não está está ocorrendo apenas no Brasil.
Nas eleições presidenciais colombianas deste ano, Rodolfo Hernández também concebeu uma política populista de direita e conseguiu não só estar no segundo turno inesperadamente, mas também chegar muito perto do seu formidável adversário, o atual presidente Gustavo Petro. José Antonio Kast aguarda a sua vez no Chile. O conservadorismo peruano reforçou-se nas eleições regionais, e na Argentina diversas fórmulas radicais estão fazendo fila para ganhar dinheiro com o enfraquecimento da administração presidencial.
Flickr/Tribunal Superior Eleitoral
Com resultado do 1º turno, América Latina vive sentimento de vertigem devido ao bom resultado alcançado por Bolsonaro
A direita está perdendo em vários países da região, mas está a reconstruir-se e a posicionar-se como um vencedor.
E isto não se deve apenas aos erros da esquerda, mas sobretudo porque está roubando a capacidade de apelar aos setores populares. Se os setores populares só foram convencidos pelo discurso da esquerda, agora têm novos canais de interpelação que estão se formando e enraizados a partir da direita, com sucesso comprovado.
Também o fazem denunciando o status quo em que incluem os líderes da esquerda, por mais que a classe trabalhadora ou proletária sejam as suas origens, tornando-os apenas mais um elemento da paisagem do establishment.
Se a esquerda se enredou no institucionalismo e imobilidade do centro, então a direita coloca-se fora dos parâmetros do establishment político e atrairá os descrentes da política tradicional que abundam na complexidade do mundo popular.
Assim, o principal risco nem sequer é que Lula no seu terceiro mandato acabe em impeachment, ou que seja removido por forças obscuras de direita. A esquerda e os setores populares mobilizados sabem como responder a este cenário.
O principal risco, que poderia acabar com a esquerda, é que os conservadores consigam hegemonizar o campo popular e saibam como implementar projetos políticos apoiados pelo antigo domínio da esquerda. A partir da oposição é ainda mais fácil.
Seria um terceiro governo de Lula um projeto estável?
Também impacienta por conhecer a fraqueza com que a esquerda deve governar, não porque isso a forçará a formar alianças táticas com o centro, que faz parte da política cotidiana, mas porque no meio da ressaca e do poder da direita radical, pode esquecer, de uma vez por todas, o projeto de transformação social que prometeu desde a sua própria existência.
Para poder governar, Lula terá de ir demasiado longe para o centro negociar, estar mais do que sob pressão, ser chantageado, e sempre na zona de suspeita, à beira de ser novamente processado.
Os ataques serão implacáveis.
O Lula que chegou ao poder no início do século, cheio de esperança para um continente que se virava espetacularmente para a esquerda, já não é o mesmo Lula, nem é a mesma América Latina, nem é a mesma esquerda.
É um Lula mais experiente, com maiores capacidades de negociação, mas também com mais certezas sobre as suas limitações. Lula terá a tarefa titânica de demonstrar que não só ocupa a desejem outra direção, para o tirar das areias movediças onde a verdadeira política o colocou.
Estas semanas que o separam do segundo turno são cruciais para mostrar que ele pode recuperar a sua narrativa esperançosa.
A opção de Bolsonaro
Por outro lado, até 30 de outubro, um Bolsonaro enfraquecido terá de se preparar para aceitar publicamente a sua derrota ou, no melhor estilo do trumpismo, ignorar o resultado.
Se ele decidir fazer o primeiro, será o “bolsonarismo” e não o Bolsonaro que terá muito poder e tentará, jogando política, sem atalhos loucos e com uma mão esquerda, posicionar-se como líder da oposição, usar todo o poder acumulado no Parlamento e nos governos, esperar pela sua nova vez e reconstruir-se como a fórmula maioritária.
A direita, e não só do Brasil, embora perdendo eleições presidenciais em todo o continente, está também a recompor-se, afastando-se dos caminhos mais liberais, institucionais e centristas e como resultado de uma narrativa rupturista contra o status quo, que está a conquistar os setores subalternos.
Será que a esquerda do continente será capaz de sair das cordas, tomar a iniciativa e reforçar o seu potencial interpelatório?
Isto ainda está por ver, não só no Brasil, mas também na América Latina.
(*) Ociel Alí López é sociólogo, cientista político e professor da Universidade Central da Venezuela.