Em termos literários, o gênero crônica se caracteriza por um recorte temporal objetivo na perspectiva da forma, mas absolutamente liberto de amarras quando do desenvolvimento narrativo, isso é, o gênero define uma temporalidade episódica enquanto estrutura, mas seu recheio, sua substância narrativa, pode ele mesmo furar o tempo. É curioso que o título do livro do antropólogo e assessor jurídico da Comissão Guarani Yvyrupa (CGY) Bruno Martins Morais seja “Do Corpo ao Pó – Crônicas da Territorialidade Kaiowá e Guarani nas Adjacências da Morte” (ed. Elefante), pois ao escolher a crônica como agenciamento de escrita, Bruno aproxima a linguagem literária, do ponto de vista filosófico, à ruptura espaço-temporal situada nas urdiduras do discurso dos Guaranis e Kaiowás.
“Do Corpo ao Pó” produz um importante e transformador descortinamento ao leitor: vida e morte para esses grupos indígenas são, talvez, partes de uma espiral complementar e dialética em face da referência ocidental binária, linear, judaico-cristã, que permeia nosso imaginário social fazendo-se pretensa teoria geral na qual a temporalidade é veiculada à norma do Início e do Fim como polaridades antagônicas.
Ao acatar o convite dos Guaranis e Kaiowás à discussão sobre os vínculos ontológicos entre morte e vida, divino e humano, corpo e territorialidade, Bruno dilata seu método de escritura para confrontar o leitor não apenas nas questões concernentes à abordagem histórica e jurídica desses temas – o que já não seria pouco -, mas adentrando também nos terrenos do pensamento especulativo, aprendido à luz das cosmologias e produções míticas às quais pôde acessar de modo fragmentário ao longo dos nove meses em que esteve em contato direto com as narrativas de vida e morte dos Guaranis e Kaiowás, localizados no Mato Grosso do Sul. A pesquisa etnográfica em “Do Corpo ao Pó” expande os próprios valores acadêmicos em uma escrita perpassada por afetos, dúvida e risco.
Para tanto, o autor (ou melhor, o tradutor das falas indígenas) teve de recolher suas impressões pré-concebidas e lidar com ritos de morte, procedimentos memoriais e de ausência por ele desconhecidos, atrelados permanentemente ao violento contexto cotidiano dessas comunidades determinado por conflitos históricos de espólio territorial e perseguição política e militarizada. À medida que as comunidades indígenas avançam nas legítimas reações de retomada de terras, também se acentuam seu massacre e estigmatização, num processo condenatório de anulação de seu percurso histórico nas fronteiras sociais, políticas e linguísticas entre Brasil e Paraguai.
As reflexões geradas nas conversas de Bruno com os amigos Guaranis e Kaiowás frutificam em sistemas teóricos – nos quais não se ignoram as expressões exógenas talvez no momento indecifráveis para os limites materiais da pesquisa, uma vez que a epistemé acadêmica está sempre em débito com a realidade – que dão a ver a relação entre a Casa, o Corpo, a Cruz e o Cemitério, signos recorrentes no discurso dos indígenas. Os ritos funerários seriam, portanto, o dimensionar do corpo em carne e em terra, morada íntima e igualmente comunitária, de modo que sua territorialidade, traduzível em “Do Corpo ao Pó” por sob operações metafóricas de linguagem, também se mobiliza pela necessidade de retomada.
Sr. Olimpo, com quem Bruno traça inúmeras prosas, a certa altura afirma: “A reza que gruda no chão, essa é a cerca do índio”, essa fala soa substancial para compor o quadro de indícios que sustentam a hipótese de que os ritos funerários reorganizam o espaço e integram a resistência da luta à composição de elaborações metafísicas que se tecem pela linguagem Guarani e Kaiowá como um profundo conhecimento de si enquanto povo a reivindicar seus espaços físicos, bem como os territórios, tramas e ossaturas da imaterialidade – esse direito capital, esse dever de honra e acolhimento para com os mortos situados às adjacências da vida.
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