Woyzeck é uma peça episódica escrita no século XIX pelo alemão Georg Büchner. Largamente estudada na Academia, parece não marcar tanta presença nos debates sobre teatro popular brasileiro, ainda que a personagem principal, Woyzeck, corresponda a um certo tipo de trabalhador brasileiro previsto em filmes do Cinema Novo, um cidadão subalternizado e profundamente influenciado pelos poderes responsáveis por sua espoliação. Woyzeck ora parece por completo alheio ao processo que o massacra, ora apresenta certa consciência de si e do contexto.
Na cena do descampado, que podemos considerar como um dos movimentos iniciais da peça (posto que o texto é feito um quadro de armar no qual as cenas contêm certa autonomia, podendo trocar de posição sem necessariamente comprometer o todo dramático), Woyzeck avisa ao amigo Andres que tem ouvido sonoridades esquisitas. Em minha interpretação, essas sonoridades transcendem o aspecto da matéria e expressam uma forma de augúrio, como enunciassem não a chegada de alguém, mas a chegada de um tempo outro, de um espírito do tempo outro.
Meio amalucado. É assim que Woyzeck já se apresenta no princípio da trama, por isso nas outras cenas não parece receber a confiança nem de Andres nem dos demais interlocutores.
Outro dia, num dia desses qualquer, eu me senti um pouco como Woyzeck, prestando atenção em sonoridades tétricas enquanto observava o meu descampado de todos os dias: essa tela azul e branca na qual inserimos mensagens, imagens, vídeos vazados de algum ser insuspeito, influenciadores digitais sem pernas, sem extensão corpórea, simulações de fraturas, de abraços, de calores, botões emocionais.
Aqui, nesse descampado de todos os dias, eu descobri, não cabe a distância, afinal a velocidade de nossos impetuosos cliques virtuais serve para encurtar os longes, talhando-os de dentro para fora, ao meio, ou pela metade.
Aqui, nesse descampado, a morte é impossível. Toda vez que há a morte algo se inverte nas regras existenciais e o fim sofre arbitrária correção e se refaz alucinadamente como um reinício de tudo. E por causa dessas constatações aclimatadas num frio de alma sem fome, porque tenho andado desse jeito, com a alma sem fome, pude descobrir que eu preciso danadamente da distância e da morte, preciso da percepção de que amizades, amores, irmandades acabam fora daqui e o que insiste em fazê-las perdurarem nesse espaço é a mesma sutil e sarcástica operação que mantém uma estrela brilhante mesmo depois que ela deixa de existir, de modo a nos manter engajados em sua apreciação.
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Só isso, o descampado real, aquele mesmo, o terrível: é esse mesmo que eu quero
Não, não estou comparando uma estrela ao universo em cliques onde nos metemos, humanidade, sem desconfiar que cada nicho de mercado tratava-se na realidade de um dos tantos porões e trancafiados que estamos, sob senhas de nossas posses, que nós escolhemos, alfanuméricas ou de ostentação memorial – a data de aniversário de um antigo namorado, a combinação de palavras preferidas reveláveis apenas através da combinação das teclas do computador. Insira seu login e sua senha, abre-te Sésamo, cala-te boca.
Afinal, não, não estou comparando uma estrela ao universo em cliques onde nos metemos. Há horizontes tardios, por exemplo, que também operam como as estrelas mortas, permanecem brilhantes em nossos pensamentos mesmo depois de sua partida.
O que estou dizendo, na verdade, nessa confusão woyzeckiana facilmente quebrável quando da aparição de qualquer argumento mais tenro e sociológico sobre a importância da comunicabilidade das redes sociais em tempos de pandemia, é que eu, pequena que sou, ainda preciso dessas coisas que vieram comigo, eu me sendo analógica: preciso chorar minhas perdas, as pessoas que partiram, as pessoas que quiseram ir, as pessoas que eu tive de mandar embora, preciso poder não lembrar e me esvaziar das memórias que uma máquina resolveu computar a meu respeito. Preciso me dar conta da distância e saborear com zelo a solidão. Preciso tecer as memórias que nem sei. Preciso pensar com a minha cabeça.
Preciso levantar os olhos e sair do descampado em busca do outro descampado, um pouco menos azul, um pouco menos previsível, árido, ressecado, solo infértil e fraco que de vez em vento recebe uma nuvem escassa carregada de chuvas, chuvas duras, chuvas de pingo pesado. Chuvas que fazem nascer no descampado um fiapo de verde, um cabo de planta, uma planta de difícil colheita, uma planta que não vinga. Um descampado que não vinga, mas fora desse daqui, longe desse daqui, morto sim, talvez, distante sim, mas um descampado real, com erre maiúsculo. É isso que eu quero. O descampado real. Só isso, o descampado real, aquele mesmo, o terrível: é esse mesmo que eu quero.