De vez em quando eu e minha irmã
fazemos dessas: quebramos o silêncio e tecemos rápidas conversas por telefone um
tanto reveladoras.
Da última vez ela disse: estamos
melhores agora, P.
Eu perguntei: como irmãs ou de um
ponto de vista mais geral?
Como irmãs e separadas, como
gente. Respondeu.
Eu e L. temos quase a mesma
idade, apenas um ano e meio nos aparta. A imagem que para mim ilustra com
precisão nossa irmandade é a das duas em um ônibus no final da tarde em Belém,
sentadas lado a lado, chorando curtinho, doído e pra dentro: nosso pai estava
internado em uma clínica psiquiátrica e nós voltávamos de uma dilacerante
visita. Éramos adolescentes, eu tinha 16 anos e ela quase 18. O balanço do
ônibus dava a impressão de que viajávamos em uma montanha-russa. Seguramos as
duas no suporte do assento da frente como que numa tentativa de agarrar firme a
própria vida, implorando silenciosas para que aqueles rasgos, sendas e
rachaduras nos devorassem com algum mínimo cuidado e delicadeza, porque já
estávamos exauridas de tanto apanhar, nossos corpos passavam por um insustentável
esgotamento físico e mental.
Com algumas amigas vi se formar
esse vínculo de nó invisível que faz com que possamos nos acolher mesmo quando
faltam palavras. Da última vez que fui ver o rio passei por essa sensação.
Éramos seis mulheres e uma cria atravessando para o lado de lá da ilha, rindo
mesmo por entre tristezas, num barquinho popopô.
Disse uma vez a Clarissa Pinkola
Estés: a risada é uma das mais profundas expressões da sexualidade feminina. É
irreversível quando mostramos os dentes mesmo se a dor por dentro insistentemente
arranha e apedreja.
Decidimos ficar em um restaurante
à beira d’água, pedimos um tambaqui na brasa, sucos de cupuaçu. Eu, Fernanda e Flávia
tomamos uma cerveja. Clarisse deita na rede pendurada em um par de açaizeiros e
tira um cochilo, ficamos de olho no filhote dela – o pequeno por entre o verde
das árvores e do mato alterna sumiço e surgimento bravamente. Dimítria foi dar
um mergulho mas logo volta para o almoço. Nos fartamos de peixe. Cuidado com as
espinhas, diz a Maria. Segundos depois Flávia confessa que está há dez minutos
engasgada sem, no entanto, entrar em desespero. Falamos em coro: come um pouco
de farinha!
Mas Flávia viu na internet que
não faz bem comer farinha para tirar espinha da garganta.
Clarisse questiona: tu preferes
confiar no Google ou confiar na gente?
Flávia escolhe a gente.
Levantamos e seguimos para nos
banhar naquelas águas lodosas, barrentas e de mistério infinito. Um caranguejo
belisca o pé da Clarisse, quase me afogo de tanto gargalhar. Eu, Maria e
Fernanda sentimos um temor místico ao mergulharmos. Dimítria, sereia, lembra de
pegar o troco da conta depois de já estarmos embarcadas para voltar. Tiramos uma
foto um pouco antes do cair da noite – todas fazendo pose, meio cafonas, meio
belíssimas. Felizes. Felizes apesar de todos os problemas suportados com graça
e coragem. Uma ao lado da outra, ni una menos, agarrando firme a vida, como
fôssemos eu e L. naquele ônibus, rasgando o ventre do rio em viagem de
montanha-russa, chorando pelos pais, pelos amores, pelas ausências, pelas
dúvidas, pelas alegrias. Cada qual com sua espinha enterrada na garganta. Irmãs
e gente. Estamos melhores agora. Não esqueçamos disso.
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