Piadas e comentários de conteúdo ofensivo ou discriminatório sempre terminaram por levantar o debate sobre os limites do humor. Quando proferidas por humoristas conhecidos, provocam uma verdadeira batalha nas redes sociais entre legiões de apoiadores e críticos, uns defendendo a liberdade de expressão, outros a retratação e a punição do autor.
No Brasil, esse debate está centrado em comediantes que fazem piadas atingindo setores historicamente oprimidos da sociedade, como negros, mulheres, pobres e gays, sobre os quais as piadas são antigos preconceitos reproduzidos pelos opressores. Na Europa, e mais particularmente na França, o tema é antigo, mas os profissionais que lidam com este tipo de humor costumam tomar precauções, contextualizando suas piadas e, muitas vezes, transformando a reprodução dos preconceitos em crítica social.
No entanto, um humorista negro e de origem humilde resolveu romper com todos esses limites. Dieudonné M’balla M’balla, mais conhecido pelo primeiro nome, transformou-se, em um espaço de dez anos, de comediante promissor e ativista ligado à causa palestina para o maior ícone antissemita da França, sendo ligado a setores de extrema-direita. Provoca indignação, principalmente da comunidade judaica, por onde quer que se apresente, mas sempre atrai uma multidão de fãs adolescentes, além dos holofotes da mídia.
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Dieudonné agora é alvo do governo de Hollande, que alega que os shows do humorista “ameaçam a ordem pública”
Suas ações mais recentes, quando fez piadas sobre o holocausto envolvendo jornalistas judeus críticos ao seu trabalho, chamaram a atenção do governo francês, em especial do ministro do Interior, Manuel Valls. Único membro do Executivo socialista com avaliação popular positiva, especialmente dos setores mais à direita, ele iniciou uma caçada ao comediante. O objetivo, até agora bem sucedido, é cancelar sua turnê nacional, que teria início nesta quinta-feira (09/01) em Nantes (oeste da França).
Valls enviou circulares a todos os prefeitos das cidades onde o espetáculo “Le Mur” (“O Muro”, em francês) está programado, orientando a interdição sob a alegação de “ameaça à ordem pública”. Além de Nantes, que enfrentou uma batalha judicial decidida na última hora a favor do governo, cidades como Bordeaux e Metz já anunciaram o cancelamento.
“Dieudonné não parece conhecer mais qualquer limite”, disse Valls ao jornal Le Parisien. “Tenho intenção de agir com a maior firmeza, nos termos da lei (…) quando Dieudonné insultar a memória das vítimas do holocausto. Isso é intolerável. Basta, precisamos romper essa mecânica de ódio”, argumentou o ministro.
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A noite em Nantes foi tensa. Policiais cercaram o Zénith, maior casa de espetáculos da cidade, sob vaias e protestos de milhares de pessoas, em especial jovens, que pretendiam assistir ao espetáculo. Dieudonné, que se diz em uma cruzada contra o “sionismo”, pediu calma ao público em sua página no Facebook. “Eles [a polícia] querem provocar um confronto físico. Voltem para suas casas cantando ‘A Marselhesa’ (hino nacional)”. Ao comentar o episódio, Valls disse que “a República venceu”.
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Polícia cercou espaço onde Dieudonné se apresentaria na cidade de Nantes
Ao mesmo tempo em que condena as posturas de Dieudonné, a imprensa francesa também passou a questionar os métodos de Valls, que acabam abrindo um precedente de censura inédito no meio humorístico francês.
O início
Embora Dieudonné sempre tenha sido afeito à polêmica, é difícil explicar sua transformação com o passar dos anos. Nascido de mãe francesa e pai camaronês, foi criado nos subúrbios parisienses, região que nem de longe lembra o glamour da capital francesa. Não por acaso, começou sua carreira criticando satiricamente a precariedade da vida dos jovens nos “banlieues”, a repressão policial, o racismo, a miséria invisível na França e a religião como fator de alienação.
Seu grande companheiro de palco nessa fase, entre 1990 e 1997, era um judeu de origem marroquina, Élie Semoun. Juntos, eles se apresentavam em espetáculo de stand-up e sketchs para a TV. Em um desses espetáculos, “Cohen e Bokhassa”, um insultava o outro com piadas antissemitas e racistas. Como as ofensas eram mútuas, o público entendia haver uma contrapartida, como em algumas provocações entre Didi e Mussum nos anos 1980 (que hoje jamais iriam ao ar), e não um ataque deliberado a um determinado grupo.
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No início do ano 2000, chegou a participar de grandes produções humorísticas francesas no cinema, como “Asterix nas Pirâmides”, e era visto como um talento promissor.
Além de sua carreira artística, era firmemente ligado à luta contra o racismo e à causa da libertação palestina. Chegou a concorrer duas vezes à Presidência da República por micropartidos cuja plataforma principal era a libertação do povo palestino.
Aos poucos, no entanto, foi se perdendo em suas apresentações e passou a cometer um erro muitas vezes recorrente: associar as críticas ao Estado de Israel, na época sob o comando do general linha dura Ariel Sharon, com preconceitos e ofensas a todos os judeus. Passou a negar o Holocausto publicamente, o que é considerado crime na França, a ironizar atentados como o ataque à escola judaica de Toulouse e a manifestar admiração por Osama Bin Laden.
A gota d’água ocorreu em dezembro de 2003, durante um talk-show em uma rede de TV pública. Fantasiado de judeu ortodoxo e com uma máscara imitando um terrorista, fazia piadas contra Israel levantando o braço em uma paródia da saudação nazista e gritando “IsraHail”. Com o tempo, o gesto se tornou uma de suas marcas registradas, a “quenelle”. Ele recusou-se a pedir desculpas, denunciando a existência de um lobby judeu para tentar silenciá-lo, e lembrou que recentemente tinha se vestido como um mulá (líder religioso muçulmano) sem que ninguém tivesse reclamado.
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Desde então, a mídia francesa considerou que o limite do humor foi ultrapassado, transformando Dieudonné em um pária. Os convites para a programas de televisão e filmes de cinema rarearam até o ponto de Dieudonné passar a depender unicamente de seu próprio espetáculo, a maioria deles sendo realizada no teatro Main D’Or, em Paris, de sua propriedade. Por muitas vezes seus shows foram cancelados, boicotados e até invadidos por ativistas judeus.
Outro fato que gerou escândalo foi quando passou a elogiar Jean-Marie Le Pen, principal líder da extrema-direita francesa, a quem já foi um dos maiores críticos, chegando ao ponto de escolhê-lo como padrinho de uma de suas filhas.
Popularidade
A ira de Valls e do governo, porém, parecem apenas contribuir para que os shows do humorista sejam um sucesso de bilheteria – o dinheiro arrecadado com as apresentações e inúmeros produtos de piadas com judeus mantém Dieudonné viável comercialmente. Na quarta-feira (08) foi acusado de lavagem de dinheiro em razão de um envio de remessas para Camarões.
Nada parece abalar a popularidade de Dieudonné, que conta com uma legião fiel de fãs, muitos deles adolescentes residentes nos subúrbios, simpatizantes da esquerda e pessoas de origem árabe e muçulmana.
Agência Efe
Defensores do humorista têm diferentes idades e origens dentro da França
O famoso atacante francês Nicolas Anelka, por exemplo, colocou lenha na fogueira ao comemorar um gol de sua equipe, o West Bromwich, no Campeonato Inglês, imitando a “quenelle”, gesto considerado por muitos apenas como manifestação antissistema. “Foi apenas uma dedicação especial ao meu amigo comediante Dieudonné”, escreveu Anelka no Twitter, rede social que não usava há mais de dois meses. O próprio Valls foi vítima de uma brincadeira ao aparecer em uma foto rodeado por jovens que, disfarçadamente, faziam a “quenelle”.
Um dos argumentos mais comuns de seus defensores é de que a reação do governo é desproporcional e seletiva. Enquanto Dieudonné pode ser impedido de trabalhar pelas piadas contra judeus, os humoristas que fazem piadas contra muçulmanos não recebem o mesmo tratamento. De fato, é o caso de lembrar o governo Hollande de sua reação quando a revista satírica Charlie Hébdo publicou caricaturas ofensivas ao profeta Maomé. A única reação de Valls e do governo, na época, foi uma ostensiva proteção policial à sede da publicação, com o objetivo de proteger a “liberdade de expressão”.