“Bolsonaro reduziu o Itamaraty a uma Secretaria da Política Externa definida no interior da sua família, projetando uma espécie de trumpismo brasileiro – só que agora sem [Donald] Trump”, é o que avaliam especialistas do Observatório da Política Externa e Inserção Internacional do Brasil (Opeb) da Universidade Federal do ABC (UFABC) durante mandato do presidente Jair Bolsonaro.
Em entrevista exclusiva a Opera Mundi, os organizadores do livro Política externa brasileira em tempos de isolamento diplomático afirmam que, diante da comunidade internacional, discursos do governo brasileiro se tornaram “pouco críveis” diante de “constantes mentiras” de Bolsonaro.
Para a doutora em relações internacionais Ana Tereza de Sousa, os “discursos chocantes” que o direitista realiza no exterior “têm como finalidade a comunicação com sua base de apoiadores domésticos”, e não de informação sobre as políticas brasileiras.
A fala de Sousa remete aos episódios recentes do presidente durante o funeral da Rainha Elizabeth II, quando falou aos apoiadores na embaixada brasileira em Londres, e em Nova York, para a abertura da 77ª Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas. Em ambas ocasiões, Bolsonaro teve posicionamentos criticados, principalmente por fazer campanha eleitoral em “um momento de luto” na Inglaterra.
Em suas demais participações na ONU, Bolsonaro também promoveu mentiras sob o palanque da organização, marcado por esconder as queimadas na Amazônia (2019), o negacionismo sobre a gravidade da pandemia no Brasil (2020), e menções ao “fantasma do socialismo” (2021).
Isolamento diplomático e “Brasil irreconhecível”
Segundo a especialista, o isolamento atual não significa a ausência de relações diplomáticas, mas sim uma deterioração da qualidade da política externa brasileira. Antes do governo Bolsonaro, o país se apresentava ao mundo como uma potência média, líder regional na América do Sul, país atuante na defesa do multilateralismo, defendendo com legitimidade o pleito de países em desenvolvimento.
De forma geral, para Sousa, o Brasil era “um país com uma política universalista, pragmática, que tinha capacidade e legitimidade de exercer um papel global”.
A partir de 2019, com a eleição de Bolsonaro, o cenário mudou, e Sousa classifica a mudança como “desastrosa e estranha às próprias tradições brasileiras”. Em primeiro lugar, a também professora da UFABC define o Brasil como um “país indisposto” em contribuir para a resolução dos problemas da agenda internacional ou mesmo de “ter um papel propositivo na América do Sul”.
“Só no último mês, os discursos do presidente com relação à Venezuela, Chile, Colômbia, Nicarágua e Argentina passaram longe da diplomacia. Ainda abandonamos mecanismos de integração como a Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac) e a União de Nações Sul-Americanas (Unasul). Perdemos a capacidade de propor medidas integradas para o desenvolvimento regional e de exercer um papel mediador na região, algo que sempre foi um aspecto importante para a política externa brasileira”, afirma.
Para ela, o país que antes atuava como articulador legítimo para melhorar a ordem internacional, principalmente do Sul Global, passou a tratar as instâncias multilaterais como “grandes conspirações globalistas”, tornando-se assim, irreconhecível.
Assim, avalia que o país sob Bolsonaro está isolado em diversas esferas, incluindo na América Latina, nas organizações internacionais por afirmações contraditórias sobre os direitos humanos, meio ambiente e saúde, e também em suas principais relações bilaterais (com Estados Unidos, China e Argentina).
Com relação ao isolamento do Brasil diante do mundo, o professor da UFABC e pesquisador sobre a política externa brasileira Diego Araujo Azzi concorda com Sousa, avaliando que Bolsonaro “é um presidente que fora do país fala para seu público interno e que tem grande dificuldade de interagir com demais chefes de Estado e de Governo”.
Sousa e Azzi organizaram o terceiro livro lançado pela Opeb tendo como foco principal analisar como as políticas econômicas brasileiras têm ido na contramão das tendências internacionais e mencionam a Opera Mundi a falta de relações diplomáticas do Brasil com países africanos, por exemplo, uma vez que o presidente brasileiro deve finalizar quatro anos de governo sem visitas ao continente.
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Primeiro chanceler do Brasil sob governo Bolsonaro, Ernesto Araújo, é responsável por diplomacia ideológica e pragmática
O que deveria ser uma prioridade para o mandatário pelas raízes afrodescendentes na população brasileira e a presença africana na cultura do país, não o é, causando perdas em fóruns e organizações internacionais, e perdendo possíveis contribuições para alargamento das relações comerciais.
Ideologia e Pragmatismo
Outro balanço da política externa do governo Bolsonaro notificado por Azzi é “um grande desequilíbrio entre ideologia e pragmatismo” o que resulta na compreensão de um Brasil “parceiro em grande medida imprevisível, errático e pouco confiável”.
Durante a administração do candidato à reeleição, dois nomes ocuparam o Ministério das Relações Exteriores do Brasil, Ernesto Araújo (2019-2021) e Carlos França (2021-atual). Para o professor, o primeiro chefe da pasta primava por atuações públicas intensas, frequentemente envolvido em embates político-ideológicos “estranhos” aos interesses do país com parceiros como a China, por exemplo.
O então chanceler brasileiro esteve no meio de crises diplomáticas durante o tempo que esteve no Itamaraty, seja quando defendeu o deputado federal Eduardo Bolsonaro após o filho do presidente brasileiro culpar a China pela pandemia do coronavírus, mas também os desentendimentos com a Venezuela, ao escrever sobre o relatório da ONU que apontaria supostas violações de direitos humanos por parte do governo de Nicolás Maduro.
A professora Sousa avalia que a política externa comandada por Araújo partiu de “uma visão de mundo” na qual o ex-chanceler considerava a existência de um Ocidente em crise e o papel do Brasil “como sendo o de tentar contribuir para sua recuperação”
“Para isso, se aliando ao país líder do Ocidente, os Estados Unidos. Esperava-se com isso conseguir vantagens para o Brasil. Essa política, contudo, enfrentou constrangimentos”, disse, afirmando que a vitória do democrata Joe Biden deixou “claro que o alinhamento de Bolsonaro era com Trump e não com os EUA. A permanência de Araújo no governo ficou insustentável”, conclui Sousa.
Os especialistas, no entanto, interpretam que a entrada de França na pasta “suavizou linhas de conflito” do Brasil com a China, mas que “pontos problemáticos” continuaram, como as posições do Brasil com relação ao meio ambiente, direitos humanos e saúde, e constantes desavenças com países da América do Sul .
O que fica para 2023?
Neste domingo (02/10), brasileiros vão às urnas para escolher ou não um novo presidente da República para o período de 2023-2026. Para os entrevistados pela reportagem, se Bolsonaro vencer as eleições de forma limpa, “o mundo lidará com ele”. Contudo, indicam alguns desafios para uma possível nova gestão a partir de janeiro do ano que vem.
Para Azzi, recuperar a coerência e a credibilidade dos posicionamentos do Brasil é o primeiro passo a ser tomado pelo novo mandatário. Em segundo lugar, recuperar a autonomia do Brasil na definição dos seus interesses e estratégias no cenário internacional, para assim realizar uma política externa que esteja conectada com as necessidades de desenvolvimento sustentável e justiça social do Brasil.
Já Souza adianta que “o mundo sente falta do Brasil”, destancando assim quatro desafios, sendo o primeiro rearticular as relações bilaterais brasileiras em bases pragmáticas e universalistas, revendo o “alinhamento vergonhoso” com Trump e afastamento dos EUA com a Presidência de Biden; melhorando relações com a China, principal parceira do Brasil na América do Sul e no Mercosul.
De acordo com a professora, reorganizar a política regional deve ser a segunda prioridade da nova gestão. Readequar a ação do Brasil nas organizações internacionais e perante os grandes temas da agenda global, como direitos humanos, comércio, saúde e o meio ambiente também deve ser papel realizado, para que assim, ocupe seu lugar de “representante dos países em desenvolvimento”.
A especialista finaliza os apontamentos com a recuperação do papel do Itamaraty. “De um lado, é preciso que institucionalmente o Itamaraty se abra para a participação da sociedade civil, que pode, certamente, contribuir para uma política externa plural e democrática. De outro, é preciso valorizar a diplomacia profissional que o Brasil possui e impulsionar sua capacidade de dar unidade para a política externa e de expressar os interesses do Brasil em bases verdadeiramente universalistas, nas quais exista um nexo entre política externa e as necessidades domésticas do país”, afirma.