O Estado brasileiro enfrenta uma acusação na Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) por possíveis violações aos direitos humanos, devido às condições impostas pelo Sistema Penitenciário Federal a um chileno que ficou preso por quase 17 anos sob regime de total isolamento, segundo seus advogados.
Se trata de Mauricio Hernández Norambuena. O ex-guerrilheiro chileno cumpriu pena no Brasil por sua participação no sequestro do publicitário Washington Olivetto, entre dezembro de 2001 e fevereiro de 2002. Em 2019, ele foi extraditado para o Chile após um acordo entre os governos de Jair Bolsonaro e Sebastián Piñera, dois políticos de direita que presidiam o Brasil e Chile, respectivamente.
Agora, os advogados do chileno acusam o Estado brasileiro de violação aos direitos humanos, por conta das condições de prisão a que Norambuena foi submetido: um regime de total isolamento por quase 17 anos, entre fevereiro de 2002 e janeiro de 2019.
A família entrou com a ação na CIDH contra o governo do Brasil em 2005, mas o caso só foi admitido pela entidade seis anos depois, em 2011.
Os trâmites em instâncias como a CIDH costumam ser longos, razão pela qual somente neste 2023 as partes receberam a autorização para produzir e entregar provas que sustentem suas teses.
No caso da família de Norambuena, seus advogados apresentaram uma série de documentos na última segunda-feira (22/05). O Estado brasileiro, representado pela Advocacia-Geral da União (AGU), também deve entregar suas provas nos próximos dias.
Segundo a tese da família de Norambuena, o chileno passou os anos de detenção em celas completamente isoladas, sem direito a visitas nem informações do mundo exterior, além de restrições com relação à entrega de comidas e livros.
A Opera Mundi, o advogado Felipe Nicolau do Carmo, que representa os Norambuena, disse que, durante o período de prisão, o chileno passou por sete diferentes centros penitenciários: Taubaté (SP), Presidente Bernardes (SP), Avaré (SP), Catanduvas (PR), Campo Grande (MS), Porto Velho (RO) e Mossoró (RN). Em todos eles, foi mantido o regime de isolamento total do preso.
“Ele foi submetido a um regime disciplinar diferenciado, que é incompatível com os direitos humanos das pessoas privadas de liberdade, uma vez que constitui tratamento cruel, desumano ou degradante”, afirmou o advogado.
O termo “regime disciplinar diferenciado” é usado no jargão jurídico e em instâncias como a CIDH para indicar a prática de torturas e violações aos direitos humanos. Para a defesa de Norambuena, o Sistema Penitenciário Federal brasileiro, ao mantê-lo preso sob essas condições, descumpriu tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, em especial a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em seus artigos 1.1 e 2.
O representante do chileno também acusa a existência de ilegalidades no processo que resultou em sua extradição ao Chile, onde está atualmente cumprindo pena.
Segundo Do Carmo, o documento oficial entregue pelo Ministério da Justiça em 2019 (quando o titular da pasta era Sérgio Moro) às autoridades chilenas, afirma que Norambuena esteve preso no Brasil somente entre julho e agosto daquele mesmo ano, que foi o período em que ele foi mantido na carceragem da Polícia Federal em São Paulo, aguardando seu traslado ao Chile.
Vale lembrar que Norambuena foi condenado no Brasil a 30 anos de prisão pelo sequestro de Olivetto.
No Chile, a Justiça local afirma que ele ainda deverá cumprir 26 anos de prisão. Atualmente, ele tem 65 anos, portanto, seria solto em 2049, aos 91 anos.
La Voz de los que Sobran
Mauricio Norambuena ficou preso por 17 anos no Brasil em regime de total isolamento, sem visitas nem acesso a informações do exterior
O advogado de Norambuena também chama a atenção para as consequências que o isolamento teve para a saúde física e mental do seu cliente. “Os laudos médicos que apresentamos mostram os efeitos terríveis que esse tipo de regime pode ter em uma pessoa, quando ela é submetida a essas condições por alguns dias. Imagine o que pode acontecer em um caso onde um indivíduo passa 17 anos nessa situação”, questionou Do Carmo.
Os sete juízes da CIDH deverão analisar as provas apresentadas, considerando os tratados de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário para julgar se houve ou não as violações alegadas pela parte acusadora.
Desde janeiro de 2023, a CIDH é composta pelos seguintes magistrados: Ricardo César Pérez Manrique (Uruguai, presidente), Humberto Antonio Sierra Porto (Colômbia, vice-presidente), Verónica Gómez (Argentina), Nancy Hernández López (Costa Rica), Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot (México), Rodrigo Mudrovitsch (Brasil) e Patricia Pérez Goldberg (Chile).
Por ser brasileiro, e pelo Brasil ser parte no processo, é provável que o magistrado Mudrovitsch decida se abster no caso. O mesmo poderia acontecer com a magistrada Pérez Goldberg, caso se considere que as nacionalidades chilenas e o fato de Norambuena estar no Chile.
Não existe um prazo específico para a conclusão do processo, que ainda pode tardar anos até se chegar a uma sentença definitiva. Ademais, os tratados que serão analisados nem sempre estabelecem punições específicas em caso de violações das suas normas.
Segundo o advogado da família, “geralmente, as condenações estabelecem uma indenização às vítimas, no caso uma só, mas o mais importante são as possíveis recomendações para mudar a legislação, de forma a evitar que casos assim aconteçam novamente”.
Quem é Mauricio Hernández Norambuena
A história do chileno Mauricio Hernández Norambuena vai muito além do sequestro de Olivetto.
Ele foi militante comunista em sua juventude e tinha apenas 15 anos quando viveu o golpe de 11 de setembro de 1973, no qual o general Augusto Pinochet derrubou o governo democrático do socialista Salvador Allende e instalou uma das ditaduras mais sanguinárias da história, que durou 17 anos, até 1990.
Durante a ditadura, Norambuena foi integrante da Frente Patriótica Manuel Rodríguez (FPMR), grupo de guerrilha urbana formado por alguns militantes comunistas para se defender da perseguição pinochetista contra os opositores, e também para tentar derrubar o regime. Nesse período, ele adotou o codinome “Comandante Ramiro”.
As duas ações revolucionárias mais importantes da história da FPMR contaram com a participação do “Comandante Ramiro”: o atentando contra o ditador Pinochet em 1985, que foi mal sucedido, e o assassinato do senador Jaime Guzmán (ideólogo da ditadura e autor da atual Constituição chilena) em 1991.
Norambuena foi preso no Chile em 1993 por seu envolvimento em ambos os casos. Porém, três anos depois, em dezembro de 1996, ele participou de uma fuga histórica ao escapar da prisão de segurança máxima de Santiago junto com outros quatro companheiros da FPMR (Ricardo Palma, Pablo Muñóz e Patricio Ortiz, além de Raúl Escobar, que não estava preso e organizou o operativo do lado de fora).
Na ação, os guerrilheiros sequestraram um helicóptero da carceragem. Norambuena foi o último a chegar ao heliporto e não conseguiu embarcar, mas se agarrou a uma cesta que estava amarrada no trem de pouso e ficou pendurado enquanto a aeronave fugia, se safando dos disparos dos gendarmes.