Na Colômbia as eleições presidenciais serão decisivas para a paz no país, depois de quase seis anos da assinatura dos Acordos de Paz entre a ex-guerrilha FARC-EP e o então presidente Juan Manuel Santos.
No dia 19 de junho, duas candidaturas de polos opostos da política se enfrentam. De um lado, Gustavo Petro e Francia Márquez (Pacto Histórico) centram sua campanha na implementação integral dos Acordos como caminho para uma mudança estrutural na Colômbia. Por outro, Rodolfo Hernández e Marelen Castillo (Liga Anticorrupção) declaram que apoiam a implementação dos Acordos e chegaram a visitar um dos territórios de paz de desmobilizados da antiga FARC-EP, mas não dão detalhes sobre os próximos passos para a implementação do pacto.
“Não acredito que um possível governo de Hernández seria capaz de avançar de maneira significativa numa proposta de construção de paz, sequer acredito que poderia avançar na implementação dos acordos de 2016. Creio que seguiria dilatando a implementação por quatro anos mais. Já um governo de Petro poderia reativar as negociações com o ELN”, destaca o historiador e defensor de direitos humanos, Carlos Medina Gallego.
As negociações de paz em Havana duraram quatro anos e contaram com a mediação do governo cubano e das Nações Unidas, além da presença de vários observadores internacionais, entre eles, representantes dos Estados Unidos. O documento com 324 páginas foi considerado um dos pactos de paz mais completos do mundo. No entanto, segundo levantamento do Instituto Kroc de Estudos Internacionais de Paz, vinculado à Universidade de Notre-Dame e uma das partes da comissão internacional de verificação dos Acordos, apenas 28% das medidas previstas no documento foram implementadas.
Especialistas apontam que em alguns dos seis eixos delineados nos Acordos o cumprimento é ainda muito incipiente. São eles: reforma rural integral, participação política, cessar-fogo e fim das hostilidades, substituição de cultivos ilícitos, reparação às vítimas e mecanismos de verificação. “A verdade é que os eixos fundamentais: de mudança da política de drogas e abertura política não foram aplicados nem 1%”, contesta Camilo González, presidente do Instituto de Desenvolvimento da Paz (Indepaz).
No próprio balanço do Instituto Kroc, aponta-se que, do orçamento previsto, há uma brecha de 1,9 bilhão de pesos colombianos (cerca de R$ 2,2 milhões) que não foram gastos com a implementação dos Acordos em 2021. “O que se fez na gestão de Iván Duque foi simular a implementação do acordo, acomodando as ações do governo ao que estava estabelecido “, critica Gallego.
“As ambiciosas reformas estruturais e mudanças institucionais consignados no texto do Acordo devem ser acompanhadas por transformações nos níveis pessoal e comunitário”, conclui o informe do Instituto Kroc.
O ponto 1 dos Acordos, que prevê uma reforma rural integral, incluindo a entrega de terras para ex-combatentes, também não foi cumprido. De acordo com o partido Comunes, que surgiu após a incorporação das FARC-EP à vida civil, do total de 7 milhões de hectares de terra prometidos, menos de 1 milhão foram entregues aos ex-combatentes, atendendo apenas sete dos 24 territórios de paz.
“Sem a terra não podemos ter projetos produtivos para um movimento agrário, como o que deu origem à antiga guerrilha das FARC-EP. A imensa maioria das pessoas que a compunham deixou a enxada para pegar o fuzil, agora estamos fazendo o caminho inverso”, explica o senador pelo partido Comunes e ex-comandante da FARC-EP, Rodrigo Granda.
O presidente do Indepaz, Camilo González, ainda destaca que além da distribuição de terras, o pacto previa o fornecimento de insumos, criação de vias de escoamento e oferta de tecnologia aos pequenos produtores.
“Outro assunto importante é a política de drogas, que é o ponto 4, que também não foi cumprido. O governo preferiu a guerra às drogas, que representa uma guerra contra os camponeses cocaleros”, afirma González.
A Colômbia é o maior produtor de cocaína do mundo, com cerca de 143 mil hectares de cultivo, que abastecem aproximadamente 70% do mercado mundial, de acordo com relatórios das Nações Unidas. Em 2021, houve um recorde de produção de cocaína:1.136 toneladas, um aumento de 8% em relação ao ano anterior, segundo o Escritório das Nações Unidas contra a Droga e o Delito (UNODC).
O ponto 4 dos Acordos de Paz previa uma série de políticas públicas para erradicar essas práticas ilegais. Entre elas a realização de uma Conferência Internacional de Combate às Drogas e a substituição de cultivos ilícitos. Cerca de 250 mil famílias camponesas se comprometeram a deixar de plantar coca para semear alimentos.
“Os camponeses fizeram filas para assinar contratos com o Estado pela substituição de ilícitos. Mil puderam assinar com o governo de (Juan Manuel) Santos (2010-2018), mas outros não tiveram respostas. A Colômbia deve ser o único país do mundo no qual a população persegue o Estado para o cumprimento da legalidade”, critica o presidente do Indepaz.
A extinta guerrilha assegura que cumpriu com sua parte no pacto, entregando as armas e buscando a reintegração à vida civil por meio de territórios de paz e outros projetos de economia solidária, mas que, além da falta de apoio do Estado, outros fatores dificultam a inserção social dos ex-combatentes.
“A estigmatização contra os ex-combatentes é imensa. Um fator que devemos eliminar se desejamos construir uma democracia verdadeira. Isso deve partir do governo, dos meios de comunicação, das universidades e escolas”, defende Rodrigo Granda.
Logo nas primeiras páginas do documento se destaca que o “eixo central da paz é promover a presença e ação eficaz do Estado em todo o território nacional, em especial em múltiplas regiões que sofrem do abandono e da carência da função pública”.
PetroGustavo/Twitter
Duas candidaturas de polos opostos da política se enfrentam nas eleições da Colômbia
A ex-presidenta da Jurisdição Especial para a Paz (JEP), Patricia Linares, destaca que se trata de um acordo de Estado, incorporado à Constituição, “portanto qualquer governo, independente da sua orientação, tem a obrigação de implementar o Acordo de maneira integral. Enquanto todos os outros pontos não se cumpram, ainda que o sistema funcionasse bem, não se alcançará o que foi prometido. A grande vantagem do Acordo é que se elencou rotas para superar as causas estruturais do conflito”.
Logo após o 2º turno da eleição presidencial na Colômbia (19), nos dias 21, 22 e 23 de junho, serão realizadas as primeiras audiências para analisar as acusações contra os ex-comandantes da FARC-EP: Rodrigo Londoño, Pablo Catatumbo, Pastor Lisandro Alape Lascarro, Milton de Jesús Toncel, Juan Ermilo Cabrera, Jaime Parra, Julián Gallo Cubillos e Rodrigo Granda.
Os magistrados da Justiça Especial para a Paz deverão ouvir depoimentos dos representantes da ex-guerrilha e de vítimas do conflito para determinar se houve crimes de guerra ou de lesa humanidade. Segundo levantamento da JEP, durante as cinco décadas de conflito, foram registradas cerca de 3 mil vítimas de sequestro.
A JEP faz parte do Sistema de Justiça Integral, criado a partir dos Acordos, e que inclui a Comissão da Verdade, Convivência e Não Repetição e a Unidade Especial para Busca de Desaparecidos durante o conflito armado.
A instância, criada a partir de 2016, também ofereceu cifras sobre o casos de “falsos positivos” – civis que foram mortos pelas forças de segurança do Estado como supostos guerrilheiros. Entre 2002 e 2008, durante os primeiros anos da gestão de Álvaro Uribe Vélez, há evidências de ao menos 6.400 casos de “falsos positivos”.
O atual presidente Iván Duque (Centro Democrático) – uma figura que fez campanha contra os Acordos – tentou barrar a JEP, não sancionando a lei estatuária que regulamentava a instância jurídica. Somente após três meses de pressão política, Duque assinou o texto.
“O que nos ajudou a resistir a esse ataque sistemático foram as organizações de vítimas que assumiram como seu o processo de implementação do acordo de paz. Defenderam esse processo porque sabem que essa pode ser a última esperança para superar esse conflito”, afirma Linares.
A Colômbia vive 58 anos de conflito armado concentrado nas disputas por território entre o exército, insurgências, narcotráfico e grupos paramilitares, que acumula cerca de 260 mil vítimas. Na história do país, houve uma série de tentativas de negociação de paz. No final da década de 1980, durante o governo de Belisario Betancourt, foi assinado um acordo de paz com a guerrilha urbana M-19, que deu origem ao processo constituinte de 1991.
Já nos anos 2000, além das negociações com as FARC-EP, também se iniciou um processo de paz com o Exército de Libertação Nacional (ELN), suspenso pelo presidente Duque em 2019. O ELN tem presença em 200 municípios colombianos e ainda atuam no território nacional. Com peso menor, a guerrilha Exército Popular de Libertação (EPL) e dissidências das FARC-EP se negaram a assinar os acordos de 2016.
Nos dois primeiros anos de implementação dos Acordos de Havana, a diminuição da violência em todo o território colombiano foi evidente. O Registro Nacional da Unidade das Vítimas mostrou a queda de uma média anual de 380 mil registros entre 2002 e 2010, para 200 mil registros entre 2011 e 2016.
“Estava previsto e estudado que o desarmamento de cerca de 15 mil militantes das FARC deixaria um vazio em zonas estratégicas do país que eram controladas por eles com o uso das armas. Se supunha que o Estado deveria ocupar esses espaços, cumprindo suas funções como Estado social de direito, e atendendo às necessidades dessas regiões. Como isso não aconteceu, esses territórios passaram a ser ocupados por outros grupos irregulares”, analisa Patricia Linares.
A partir de 2018, com a eleição de Duque, volta a escalada de assassinatos contra líderes sociais e ex-guerrilheiros.
De acordo com levantamento do Instituto de Desenvolvimento da Paz (Indepaz), desde 2016, acumulam-se 1.624 defensores de direitos humanos e ex-combatentes assassinados, sendo 930 mortos durante a gestão de Duque.
Somente em 2022 já foram registradas 44 chacinas com mais de 100 vítimas, sendo 21 pessoas que assinaram o mecanismo de paz.
“A proteção aos ex-combatentes não pode se resumir a entregar-lhes um colete à prova de balas e um guarda-costas. É preciso gerar políticas públicas que atendam ao caráter estrutural desse cenário, no qual todos os dias estão assassinando essas pessoas”, defende Patricia Linares.
González, presidente do Indepaz, defende que existem estruturas criminosas e ações sistemáticas que causam a violência, portanto a situação requer uma política macro.
“Devemos fortalecer a unidade especial de investigação, que até agora não alcançou mais autonomia, como era planejado, e acabou sendo incorporada ao Ministério Público. Temos um sistema judiciário extremamente ineficiente, o que não estanca no MP, fica parado nos tribunais. Além de desarticular as estruturas criminosas que causam esses assassinatos”, afirma.
Para os especialistas, o momento requer um esforço do próximo governo para fortalecer a democracia e a transição para a paz.
“O caminho é o diálogo e trabalhar em conjunto para erradicar as causas estruturais de exclusão, de violações de direitos e de expressões da guerra que estão semeadas e não nos deixam caminhar para a paz”, defende Patrícia Linares.
“Num país, que se encontra numa transição dos acordos de paz ao pós-conflito, se requer uma política ampla. Terminar uma guerra pode ser uma revolução”, conclui Camilo González.