Quando o ex-presidente dos EUA Donald Trump iniciou sua campanha de “pressão máxima” contra a Venezuela para desestabilizar e derrubar o governo de Nicolás Maduro, diversos países latino-americanos alinhados com os interesses estadunidenses colaboraram de forma ativa com os planos da Casa Branca. O Chile, comandando por Sebastián Piñera; a Argentina, com Mauricio Macri; o Paraguai, com Mario Abdo Benítez, e o Brasil, com a presidência de Jair Bolsonaro, foram alguns dos que passaram a classificar o país vizinho como uma “ditadura” e reconheceram o ex-deputado Juan Guaidó como “presidente interino”.
Dentre os governos da região que forneceram apoio às estratégias norte-americanas contra a Venezuela, o da Colômbia, liderado pelo direitista Iván Duque, foi um dos mais ativos. Além de reconhecer a presidência fictícia de Guaidó, o mandatário forneceu apoio logístico e financeiro para aliados do ex-deputado que residem em território colombiano e teve seu mandato marcado pelo comprometimento com figuras e organizações que planejaram tentativas de golpes de Estado e até mesmo de invasões contra a Venezuela, o que fez com que Maduro rompesse relações com o país vizinho.
Agora, a 15 dias do 2º turno das eleições presidenciais na Colômbia, os dois candidatos que disputam a presidência do país, embora tenham projetos muito distintos entre si, tentam se afastar do legado de Duque e compartilham de uma mesma promessa feita durante a campanha: o restabelecimento de relações diplomáticas com a Venezuela. A posição, adotada tanto pelo progressista Gustavo Petro quanto pelo empresário de direita Rodolfo Hernández, parece confirmar a busca de ambos por uma imagem pragmática na política externa que, uma vez no poder, resultaria em uma reaproximação, ainda que meramente formal.
Em entrevista ao Brasil de Fato, o cientista político venezuelano William Serafino afirma que a posição adotada pelos candidatos pode ser explicada pelo interesse econômico em reativar atividades comerciais entre os países que sofreram uma redução nos últimos anos. Além disso, diz o pesquisador, uma reconciliação entre Bogotá e Caracas traria benefícios para o governo venezuelano.
“Eu acredito que a Venezuela pode ganhar uma ampla zona de alívio no âmbito de sua segurança fronteiriça, na reativação das relações comerciais e diplomáticas, e também buscar um processo de reconciliação entre ambos os países, o que acredito que ocorreria em caso de vitória de ambos os candidatos. Isso é um sinal positivo para o governo venezuelano, pelo fato de ter um país vizinho que contribui para a paz e não para a guerra”, diz.
Dividindo mais de 2 mil quilômetros de fronteira terrestre, além de diversos aspectos históricos e culturais semelhantes, Colômbia e Venezuela tiveram suas relações deterioradas desde que Duque chegou ao poder, em 2018, e passou a ser um dos principais articuladores de grupos de pressão para desestabilizar o governo de Maduro, dando apoio a opositores da extrema direita venezuelana. Durante seu mandato, o presidente chegou a fornecer apoio para uma tentativa de invasão à Venezuela, facilitou a tomada de uma empresa venezuelana em Barranquilla por opositores, reconheceu e recebeu Guaidó em cúpulas como “presidente” da Venezuela, além de ser acusado diversas vezes pelo governo Maduro de proteger paramilitares na fronteira e financiar tentativas de golpe contra o chavista.
As relações conturbadas entre Duque e Maduro chegaram a superar os níveis de tensão alcançados durante os mandatos dos ex-presidentes Hugo Chávez e Álvaro Uribe, que romperam relações por alguns meses em 2010, após Bogotá acusar o presidente venezuelano de “abrigar” guerrilheiros do antigo grupo armado FARC.
O clima de instabilidade e a ausência de comunicações formais entre os países afetou imigrantes colombianos e venezuelanos vivendo dos dois lados da fronteira. Segundo a Acnur (Agência da ONU para Refugiados), existem cerca de 1,8 milhões de cidadãos venezuelanos vivendo na Colômbia. As cifras de colombianos vivendo na Venezuela não é exata, pois embora o governo venezuelano fale em 5 milhões de cidadãos, a ACNUR afirma que, nos últimos anos, quase 900 mil retornaram à Colômbia.
Além disso, outro tema afetado pela tensão entre Colômbia e Venezuela foi o comércio entre os países, que atingiu níveis recordes entre os anos de 2005 e 2009, mas caiu consideravelmente após 2019, quando houve o rompimento de relações. Segundo dados do Departamento Nacional de Estatísticas da Colômbia, o país exportou para a Venezuela mais de US$ 6 bilhões no ano de 2008, enquanto as exportações caíram para US$ 195 milhões em 2020.
Para o professor de Direito Pietro Alarcón, colombiano e membro da coalizão liderada por Petro, o Pacto Histórico, a normalização de relações entre Bogotá e Caracas é um tema que interessa à população de ambos os países, uma vez que a hostilidade diplomática ocorrida ao longo dos últimos anos “responde a um argumento artificial de que a Revolução Bolivariana é um processo contrário aos interesses colombianos”.
“Quando analisamos a sequência de fatos dessa deterioração das relações entre Colômbia e Venezuela, observamos que o que existe na Colômbia é uma permanente agressão à Revolução Bolivariana, ou seja, o governo da Colômbia tem o intuito de hostilizar, de agredir, de gerar condições para que se desestabilize o governo da Venezuela. É uma atitude hostil, que reproduz o interesse dos Estados Unidos na região”, diz Alarcón em entrevista ao Brasil de Fato.
Colômbia e Venezuela: o que pensam os candidatos?
O senador e ex-guerrilheiro Gustavo Petro, que encabeça a coalizão progressista Pacto Histórico, está longe de ser o “líder bolivariano” que muitos de seus rivais dizem, na esperança de ligar sua defesa de pautas de esquerda ao campo ideológico representado pelo governo venezuelano. Durante a campanha, inclusive, o candidato rebateu diversas críticas que alegavam que o país “se tornaria uma Venezuela” caso ele triunfasse, fazendo questão de expor as diferenças entre seu projeto e o chavismo venezuelano e chegando a atacar o presidente Nicolás Maduro em algumas ocasiões.
“Estamos vivendo uma ditadura, um regime muito parecido com o nosso país vizinho. Qual é a diferença entre Duque e Maduro, eu pergunto? São irmãos gêmeos de um mesmo regime, com a mesma ação, com o mesmo sistema econômico, com as mesmas características políticas”, afirmou o candidato durante um comício em Medellín no dia 20 de maio.
Histórico opositor do chamado “uribismo”, corrente política identificada com o ex-presidente de extrema direita Álvaro Uribe e da qual Iván Duque faz parte, Petro chegou a ponderar o restabelecimento de relações com a Venezuela, classificando o tema como “polêmico e discutível em um nível global”. As declarações foram feitas em um comício realizado na cidade de Cúcuta, no dia 6 de maio, quando o candidato afirmou que, apesar das nuances, não vê outra alternativa para a cidade “se não houver um restabelecimento cabal das relações diplomáticas e consulares entre os dois países”.
A importância expressada por Petro em Cúcuta se deve ao fato de a região fazer fronteira com a Venezuela e ter recebido milhares de imigrantes venezuelanos nos últimos anos. Além disso, em 2019, a cidade foi palco de um dos episódios de maior tensão entre Bogotá e Caracas e que motivou o rompimento de relações entre os países. Em fevereiro daquele ano, o governo colombiano forneceu apoio material e logístico para uma tentativa de invasão ao território venezuelano com o pretexto de levar uma suposta “ajuda humanitária” ao país. A ação, orquestrada por Guaidó e seus aliados com o aval da Casa Branca, começou do lado colombiano da fronteira, com um festival de música batizado de “Venezuela Aid Live”, financiado pelo milionário britânico Richard Branson, e terminou com o incêndio de caminhões carregados de “insumos para venezuelanos necessitados” que tentaram atravessar à força a fronteira entre os dois países.
Segundo Alarcón, um dos pontos fundamentais que a candidatura de Petro está considerando para “criar um ambiente de paz e segurança regional” é a revisão da presença de militares norte-americanos em bases na Colômbia, fruto de acordos assinados entre Uribe e o então presidente dos EUA Barack Obama, em 2009. Apesar das críticas do progressista a Maduro, Alarcón afirma que a política externa do candidato se baseia na autodeterminação dos povos e na não ingerência em assuntos externos.
“Partindo dessas conversas com os Estados Unidos, que não serão fáceis, o Pacto Histórico propõe a retomada de uma atitude de respeito à autodeterminação dos povos da região. A Colômbia estaria disposta, em um futuro governo Petro, a realizar os ofícios necessários para que exista um clima de tolerância e de paz na Venezuela, se o povo venezuelano assim o desejar”, disse.
Pensa Presidencial
Maduro rompeu relações com Colômbia após Duque apoiar tentativa de invasão à Venezuela
O rival de Petro no 2º turno foi o elemento surpresa dessas eleições. Rodolfo Hernández, empresário de 77 anos que tenta se vender como um “outsider” da política, garantiu um lugar na segunda volta ao superar Federico Gutiérrez, que indiretamente recebia apoio das forças governistas. Apesar de disparar críticas à gestão de Duque e tentar se desvincular do campo “uribista”, Hernández recebeu o apoio de Uribe quando se elegeu prefeito da cidade de Bucaramanga, em 2015, e chegou a ser elogiado pelo ex-presidente durante a campanha presidencial. Agora, com a ausência de candidatos alinhados ao “uribismo” no 2º turno, o empresário que se diz “rei do Tik Tok” se esforça para viralizar na rede social popular entre os jovens e deve receber boa parte do apoio e dos votos da direita colombiana.
Isso não impede, entretanto, que Hernández siga tentando se descolar da imagem de “político tradicional” e exponha as supostas diferenças entre suas ideias e as do governo Duque. Suas visões sobre a Venezuela e promessas de campanha são um exemplo da estratégia do direitista, já que, em seu programa de governo, o candidato garante que as relações diplomáticas com o país vizinho serão restabelecidas a partir do primeiro dia de seu mandato. As motivações para tal medida, segundo o próprio Hernández, são econômicas, uma vez que “o dano que a economia fronteiriça com a Venezuela sofreu é incalculável e levará muito tempo para se recuperar”. Efeito das promessas ou não, Hernández venceu em quatro dos sete departamentos colombianos que fazem fronteira com a Venezuela e também na cidade de Cúcuta, onde obteve mais de 50% dos votos.
Outra marca da trajetória política do empresário aspirante a presidente são as declarações agressivas e muitas vezes preconceituosas, principalmente sobre mulheres e migrantes. Quando ocupava o cargo de prefeito em Bucaramanga, Hernández chegou a dizer que as mulheres venezuelanas que haviam imigrado para a Colômbia eram “fábricas de fazer crianças pobres”. Questionado sobre suas afirmações, o candidato disse que não se arrepende e que “o problema é que as pessoas gostam que a verdade seja dita com meias palavras, mas eu não sou assim, não tenho essa personalidade, sou espontâneo, digo as coisas como eu as sinto”.
Golpe no “uribismo” e fim do apoio a Guaidó
Com 54% de participação, cifra maior do que o último pleito, as eleições presidenciais deste ano na Colômbia tiveram muitas surpresas e fatos inéditos. Além da possibilidade de um candidato progressista apoiado por forças de esquerda ser eleito pela primeira vez e do surgimento de uma figura incomum no campo da direita, o país chega a um 2º turno sem um representante direto do “uribismo”.
Apesar de já ter recebido o apoio de Federico Gutiérrez após o primeiro turno, Hernández busca construir sua campanha com o discurso “antissistema” e agora, mesmo que receba votos “uribistas”, se consolida como uma opção da direita sem se vincular com a corrente política ligada ao ex-presidente.
“Foi o povo que sepultou o ‘uribismo’ e o sepultou nas urnas, apostou no Pacto Histórico, com mais de 8 milhões de votos, e preferiu um outro ao invés do candidato artificial do ‘uribismo’, Federico Gutiérrez. Portanto, o golpe ao uribismo é um golpe nas urnas, um golpe soberano, é um golpe popular”, argumenta Pietro Alarcón.
Para o cientista político venezuelano William Serafino, o enfraquecimento do “uribismo” pode ter influência direta na estratégia da oposição de extrema direita venezuelana, que tinha em Iván Duque um aliado ativo na região, e deve simbolizar um alívio para o chavismo, já que diversas tentativas de golpes e atentados contra o governo Maduro “foram preparados em território colombiano”.
“A Colômbia foi usada como uma plataforma de desestabilização e agressão contra Venezuela, fato que está ligado sobretudo com o paramilitarismo, com a inserção de paramilitares em território venezuelano e também como o país foi utilizado como campo de treinamento para operações tão graves, não só a tentativa de assassinato do presidente em 2018, mas também a Operação Gedeón, de maio de 2020, que foi preparada no território de Rioacha. Esses são fatores fundamentais que o ‘uribismo’ utilizou para seguir sendo esse posto avançado dos interesses dos EUA”, diz.
Além de ser um dos primeiros a reconhecer Guaidó como “presidente interino”, o mandato de Duque foi responsável por proteger iniciativas opositoras que financiavam o “interinato” do ex-deputado. O maior exemplo é o caso da empresa Monómeros, que pertence ao governo venezuelano, mas que foi tomada por esse grupo da oposição. Localizada em Barranquilla, na Colômbia, a companhia que produz fertilizantes é uma filial da estatal Petroquímica da Venezuela e, desde 2019, está sob controle de opositores nomeados por Guaidó com anuência do governo colombiano, já que Duque não reconhece Maduro como presidente.
Responsável pela produção de cerca de 50% dos fertilizantes utilizados em produções colombianas e com 1,4 mil postos de trabalho, desde que passou às mãos de Guaidó a empresa foi centro de diversos casos de má gestão e disputas internas da oposição pelo controle de seus rendimentos, que passaram a financiar as atividades do “governo interino”. Em setembro de 2021, a Superintendência de Sociedades, organismo vinculado ao Ministério do Comércio da Colômbia, colocou a empresa sob seu controle, alegando a necessidade de “sanar a situação crítica de ordem jurídica, contábil, econômica e administrativa”.
Durante a campanha, Gustavo Petro criticou a forma com que o governo colombiano lidou com a situação da empresa venezuelana e prometeu recuperar a Monómeros caso seja eleito. “A Colômbia era um produtor de insumos agrícolas e fertilizantes até que Duque entregou a empresa Monómeros, em Barranquilla, a Guaidó e ele a quebrou. Agora, faremos um plano de emergência para recuperar a Monómeros e produzir fertilizantes baratos”, prometeu o candidato em abril.
Alarcón classifica a situação da Monómeros como uma “anomalia”, já que as autoridades colombianas insistem em reconhecer gestores e funcionários que “não foram nomeados pela administração pública legítima da Venezuela”. O membro do Pacto Histórico ainda afirma que, quando Petro fala em “recuperar” a empresa, o candidato pretende “colocar as coisas do ponto de vista político, técnico e jurídico nos seus lugares”.
“A Colômbia fez muito mal quando decidiu se relacionar com aqueles que não contaram com o favorecimento popular, portanto não têm condição de gerenciar qualquer tipo de empresa na qual exista capital público venezuelano, porque estamos falando de recursos públicos do povo da Venezuela, isso é criminoso, isso é um delito, não é somente um crime político, é um crime do ponto de vista penal, e o governo de Petro não poderia patrocinar uma questão desse tipo como Iván Duque patrocina”, afirma.
As afirmações de Petro sobre a Monómeros vêm acompanhadas de críticas à oposição liderada por Guaidó. Um futuro governo do progressista, portanto, poderia representar uma perda ainda maior do apoio internacional que o “presidente interino” vinha recebendo desde sua autoproclamação. Em janeiro de 2021, a União Europeia deixou de reconhecer o “interinato” de Guaidó, embora ainda classifique o ex-deputado como uma “liderança destacada” da oposição. Além disso, em abril deste ano, o presidente argentino Alberto Fernández afirmou que pretende retomar as relações diplomáticas com a Venezuela, abandonando também o reconhecimento ao opositor feito pelo país quando presidido pelo direitista Mauricio Macri.
Para Serafino, a normalização de relações entre Colômbia e Venezuela já afetaria fortemente a pouca legitimidade que Guaidó ainda possui na comunidade internacional, além de afastar “a capacidade e possibilidade de se montar planos de golpes de Estado contra a Venezuela em território colombiano”.
“Se Petro vencer, Guaidó vai perder automaticamente. Essa é a conclusão política de primeiro plano, a manchete do dia seguinte deve ser ‘Guaidó perdeu na Colômbia’, porque ele tinha uma base de apoio político, de apoio logístico, de financiamento e de apoio diplomático. Quando se normalizarem as relações, isso vai se perder completamente e vai haver uma inversão de fatores, pois Guaidó tentou usar a Colômbia para isolar a Venezuela e o presidente Nicolás Maduro, agora isso se transformaria no isolamento de Juan Guaidó”, diz.