No último domingo (11/08), foram realizadas as eleições primárias, abertas, simultâneas e obrigatórias na Argentina, conhecidas pela sigla PASO, na qual participam os pré-candidatos que vão se apresentar às eleições presidenciais em outubro. Assim são resolvidas possíveis disputas internas dentro dos partidos e cada pré-candidato precisa obter 1,5% dos votos para formalizar sua candidatura. Concretamente, funciona também como uma pesquisa bastante precisa a onze semanas antes da eleição.
O resultado das eleições primárias do último domingo foi surpreendente tanto para o governo, como para a oposição. Os 15 pontos de diferença entre Alberto Férnandez [candidato da Frente de Todos, com Cristina Kirchner como vice-presidente na chapa] e o atual presidente Maurício Macri [da coligação Juntos pela Mudança] expõe um resultado difícil de ser revertido a priori. Coloca a chapa Fernández-Fernández com boas possibilidades de ganhar no primeiro turno, em outubro, e colocar fim aos 4 anos de governo neoliberal, com as consequências que terá essa vitória inclusive em termos regionais para fortalecer uma perspectiva de maior autonomia em relação às políticas imperialistas do continente.
A Frente de Todos obteve maioria em quase todos os distritos do país, exceto na Capital Federal (Buenos Aires) e em Córdoba, lugares nos quais, apesar da derrota, a diferença de votos em relação à eleição anterior foi reduzida significativamente . Nas províncias mais esquecidas pelo governo a diferença foi abissal, chegando a 70% no nordeste argentino. A chapa de oposição também ganhou em províncias historicamente conservadoras e que apoiavam o oficialismo, como em Mendoza e Jujuy.
Já a província de Buenos Aires merece uma reflexão à parte, pois o candidato a governador pela Frente de Todos, Axel Kiciloff, alcançou quase 50% dos votos, com uma diferença de 18% em relação à atual governadora Maria Eugenia Vidal (da coligação macrista). Este fato tem uma importância em termos quantitativos, mas também qualitativos. A derrota de Vidal significa um golpe muito duro, porque era considerada uma potencial figura de continuidade para o poder econômico. Por outro lado, a candidatura de Axel Kiciloff é, objetivamente, a mais progressista apresentada pelo peronismo no principal distrito do país desde o retorno da democracia.
Por outro lado, as opções eleitorais consideradas uma terceira via ficaram muito reduzidas, considerando que o terceiro pré-candidato, Roberto Lavagna (pré-candidato pela coligação Consenso Federal), obteve somente 8% dos votos. Também as opções da direita radicalizada tiveram resultados insignificantes.
Muito se falou nos últimos meses sobre que lugar ocupam as condições materiais na construção da subjetividade das pessoas no momento de decidirem seu voto, bem como qual papel os meios de comunicação cumprem na construção da realidade cotidiana das pessoas e como os dispositivos de comunicação operavam para amortecer no estado de ânimo das pessoas a ofensiva liberal. Embora o comportamento não possa ser atribuído somente aos efeitos das condições materiais, a eleição na Argentina demonstrou que elas continuam sendo centrais na tomada de decisões no terreno político. Este é um dos grandes pontos de fragilidade do modelo neoliberal: sua dificuldade na construção de hegemonia em projetos de fôlego, por não poder garantir condições para a reprodução da classe trabalhadora. Isso sem negar que apesar da enorme piora na qualidade de vida da maioria dos argentinos, Macri obteve 32% dos votos. Neste cenário, é preciso observar, nos próximos meses, qual estratégia adotarão o capital transnacional e os Estados Unidos para tentar reverter uma situação que a priori parece muito difícil mas que é fundamental para sua estratégia para a região, na qual a Argentina tem um papel geopolítico importante.
Daqui até outubro, é preciso acompanhar de perto como vão reagir os mercados e qual será a estratégia dos setores do poder econômico. No dia seguinte às eleições primárias, o dólar subiu 30%. Paradoxalmente, um aprofundamento da crise econômica, embora possa ser um mecanismo para desestabilizar o país diante da quase iminente derrota do oficialismo, os custos em termos de capital político são vinculados ao governo, como demonstra as eleições recentes que colocam Mauricio Macri e seu governo como os principais responsáveis pela situação que atravessa o país. Ainda faltam alguns meses para a sucessão em dezembro e o fantasma da ingovernabilidade já deixou de ser um problema do futuro governo para ser um problema atual. Um cenário de aprofundamento da crise e, por conseguinte, do conflito social não é um cenário favorável para o oficialismo ou para a oposição mas que, claramente, deve ser mais preocupante para Macri.
Marcos Corrêa/PR
Macri foi derrotado pela oposição nas primárias do último domingo (11/08)
Alguns elementos que podem explicar a contundente vitória da oposição:
1. A crise econômica na qual o país está afundado. O capital transnacional utilizou o Estado durante os anos do governo de Macri como lugar para fazer seus negócios milionários, desviando milhões de dólares que foram adquiridos a partir do empréstimo com o FMI; assim como através das políticas de ajuste e esvaziamento do Estado. Isto teve como consequência a piora de todos os indicadores sociais e econômicos como, por exemplo, o aumento da pobreza, da extrema-pobreza e do desemprego.
2. A incapacidade do governo para ampliar sua base política com novas alianças. Embora tenham conseguido angariar uma pequena fração do peronismo com a incorporação de Miguel Ángel Pichetto como vice de Macri, tiveram fortes disputas internas entre setores do agronegócio e da federação industrial. Isto fragilizou seu arsenal político retirando sua capacidade ofensiva.
3. A estratégia da polarização utilizada durante todos estes anos pelo oficialismo se voltou contra si mesmo a medida em que o tempo foi passando e as responsabilidades do governo anterior foram ficando cada vez mais distantes, enquanto o atual governo teve que se responsabilizar, cada vez mais, por suas ações e políticas. A estratégia de polarização ficou praticamente desabilitada como ferramenta do oficialismo com a figura de Alberto como presidente. E a oposição passou à ofensiva em termos de discurso e relato, a renovação e o impulsionamento foram mensagens que ficaram no âmbito da Frente de Todos.
4. A grande habilidade para aglutinar quase toda a oposição na Frente de Todos. A candidatura presidencial de Alberto Fernández, embora tenha se orientado para o centro e representa uma guinada a setores do poder econômico, possibilitou a incorporação de atores como Sergio Massa [líder da Frente Renovadora] e certos atores do setor industrial. A grande maioria dos governadores também se uniu às colunas da frente de oposição.
5. Alta estruturação do campo popular e confluência quase total dentro da Frente de Todos. Tanto as organizações da economia popular quanto as do movimento de mulheres foram protagonistas da campanha eleitoral a partir, por exemplo, da candidatura de Ofelia Fernández, candidata representante da juventude, a mais jovem desta eleição com 19 anos e, particularmente, das jovens que ocupam as ruas e da figura de Juan Grabois, dirigente social que, apesar de não ser candidato, teve um grande protagonismo midiático
Desafios
Para o campo popular, o cenário continuará sendo de muito trabalho. Não devemos cair em impressões triunfalistas. É preciso fortalecer a vontade popular na perspectiva de uma transformação que coloque na agenda a ampliação de direitos e o protagonismo popular como eixos fundamentais da disputa. Não só para atravessar a campanha eleitoral mas também para a nova etapa que se abrirá com o governo de Alberto Fernández e Cristina F. Kirchner. Sobretudo porque o futuro governo será necessariamente um governo de transição e as mudanças materiais na vida do povo não serão percebidas rapidamente – no melhor dos casos–. Da mesma forma, para o futuro governo, será um desafio poder manter aglutinado todos os espaços políticos que integram hoje a Frente de Todos.
No campo popular, agora começa um debate muito mais intenso, que vamos precisar realizar, para pensar até onde é preciso pressionar um governo que assumirá ainda muito condicionado pela forma como o país ficou após quatro anos de intenso neoliberalismo e em um contexto internacional complexo. Será necessário fazer navegar um governo de transição sem causar demasiadas ondas ou, pelo contrário, devemos pressionar para conseguir reformas estruturais que possibilitem ir cristalizando novas correlações de força para os setores populares. Certamente, os 12 anos de governo progressista deixaram alguns ensinamentos e há certos consensos que devemos seguir fortalecendo com mobilização e organização popular. Estes dois elementos são fundamentais para o que está em jogo nessa etapa que começa.
*Manuel Bertoldi é engenheiro agrônomo, professor da Universidade Nacional de La Plata (UNLP), militante da Pátria Grande e integrante da Secretaria da Alba Movimentos.
Tradução: Luiza Mançano