Quase um ano após Morales ser derrubado da presidência, o Movimento ao Socialismo (MAS) venceu as eleições bolivianas, realizadas em 18 de outubro, tirando do poder o governo interino de Jeanine Áñez. O novo chefe de Estado será Luis Arce, antigo ministro da Economia da gestão Morales.
De origem urbana, da classe média de La Paz, Arce tem um perfil moderado e herdará um país que, em apenas um ano, deu um cavalo de pau e viu o governo interino mudar radicalmente a política dos últimos 13 anos. Sem falar da crise econômica acelerada pela pandemia do coronavírus.
Apesar do tom conciliador da campanha, Arce, segundo analistas ouvidos pela Sputnik Brasil, naturalmente deverá iniciar um processo de reversão das políticas do governo Áñez.
“Um resgate das políticas do período Morales envolverá tentativa de orientar a ainda frágil industrialização e integração da economia nacional, com investimentos públicos e papel estratégico conferido às empresas estatais e nacionais, nos segmentos de petróleo e gás, petroquímica, ferro e, mais recentemente, da industrialização do lítio. A violência, desorganização e instabilidade política no país, com adiamentos sucessivos das novas eleições, foi acompanhada por seguidas trocas e casos de corrupção envolvendo indicados por Áñez para dirigir ministérios e estatais. Em uma situação política mais estável, o novo governo deve revisar as tentativas de desmonte e aparelhamento dessas instituições econômicas e buscar a retomada de financiamento, investimento externo e parcerias estratégicas com empresas de países como Rússia, Índia e China”, disse Alessandro Biazzi Couto, professor e pesquisador do CEFET-RJ.
Relações com o Brasil de Bolsonaro
Em entrevista para a Folha de S.Paulo, o presidente eleito disse que iria renegociar o acordo de gás entre Brasil e Bolívia, renovado em março de 2020 pela gestão interina e a Petrobras.
Arce afirmou que um contrato estabelecido por um mandato “ilegítimo” não pode ser considerado válido. Mas até que ponto vão as intenções e o poder de fogo do presidente para conseguir isso? E como serão as relações diplomáticas com o governo brasileiro, que comemorou a queda de Morales?
De acordo com especialistas, o MAS repaginado adotará postura pragmática nas relações com o país vizinho. O mais difícil, porém, será o Brasil agir de maneira semelhante.
“A política externa brasileira está altamente comprometida com valores ideológicos que, sob qualquer ponto de vista, são confusos. O Brasil deve tratar a Bolívia nos mesmos termos nos quais trata a Argentina. Dividindo o mundo em um modelo anacrônico no qual se acredita que há uma ameaça à liberdade por parte de governos comunistas. Hoje, a política externa brasileira queima seu estoque de prestígio internacional de maneira acelerada e sem nenhuma responsabilidade com o futuro. Nesse sentido, ainda que o presidente Arce proponha uma via pragmática, deverá exercitar a paciência, assim como Fernández na Argentina, para ouvir as mais descabidas declarações”, disse à Sputnik Brasil Marcial Suarez, professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (UFF).
‘Arce não deve buscar retaliação’
Biazzi Couto também enxerga que “há um forte interesse” da Bolívia “em manter boas e intensas relações com o Brasil, dando continuidade ao pragmatismo estabelecido no período em que Morales governava”.
“Arce não deve buscar uma retaliação pelo apoio dado por Bolsonaro aos dirigentes da agora oposição, e tentará avançar uma agenda mais positiva, de iniciativas para atrair empresas brasileiras e renegociar o acordo de importação de gás. Interessa também às prefeituras de cidades gêmeas na fronteira e a estados brasileiros, como Mato Grosso do Sul, uma agenda de cooperação com a Bolívia, voltada para facilitação do comércio e cooperação transfronteiriça, transporte rodoviário e ferroviário e de aproveitamento industrial em projetos binacionais”, disse o especialista em relações internacionais, América Latina e política energética.
História de um gasoduto
O contrato de fornecimento de gás entre o Brasil e a Bolívia foi assinado em 1996 por meio do Tratado de La Paz. Após três anos de construção, o Gasbol (Gasoduto Bolívia-Brasil) entrou em operação em 1999, mas só alcançou o pleno funcionamento em 2010, quando atingiu a meta de atender 15% de todo o consumo brasileiro de gás.
ABI
Arce irá reverter decisões de Áñez, acreditam analistas
O gasoduto parte da cidade boliviana de Santa Cruz de la Sierra e termina em Canoas, no Rio Grande do Sul, atravessando antes Mato Grosso do Sul, São Paulo, Paraná e Santa Catarina, e passando por cerca de 135 municípios. Em São Paulo, o traçado acompanha o rio Tietê, chegando a Campinas, onde se localizam as primeiras indústrias que utilizaram o gás natural boliviano.
Com duração de 20 anos, o contrato valeu de 1999 até 2019. Nesse meio de campo, houve momentos turbulentos. Em 2006, após assumir o poder, Morales decretou a nacionalização do gás natural boliviano, transferindo a propriedade das reservas para o governo e aumentando os impostos sobre a produção – o que impulsionou as taxas de crescimento do país.
O governo Morales chegou a colocar tropas do Exército nos campos de produção das empresas estrangeiras e declarou que, se elas não aceitassem as condições impostas, em 180 dias teriam que deixar o país. Na época, o presidente Lula reviu os contratos entre os dois países e conseguiu controlar a situação.
Novo aditivo
Com o fim da validade do acordo, as estatais Petrobras e Yacimientos Petrolíferos Fiscales (YPFB) assinaram, em março deste ano, aditivo que prevê a redução da obrigação de fornecimento da empresa boliviana para a brasileira, do volume atual de 30,08 milhões de metros cúbicos por dia, para 20 milhões de metros cúbicos diários.
Uma novidade é que essa capacidade excedente, de dez milhões de metros cúbicos, poderá ser negociada diretamente pela Bolívia com empresas privadas brasileiras. A regra é uma etapa da abertura do mercado de gás brasileiro acordada, em 2019, com o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). A expectativa do governo brasileiro é de que isso torne o gás mais barato no país. Também existe a previsão de que a Petrobras saia dos segmentos de transporte e distribuição do produto.
O aditivo também prevê que, dos 20 milhões de metros cúbicos fornecidos por dia, a Petrobras tem que pagar por 14 milhões de metros cúbicos diários, consumindo ou não – prática chamada de take or pay.
A estimativa da Petrobras é de que o aditivo tenha duração de até seis anos, dependendo do ritmo de consumo. Isso porque o novo contrato estipula a retirada de volumes previstos no contrato inicial, mas que não chegaram a ser usados. O volume residual é estimado em cerca de 0,04 trilhões de pés cúbicos.
Brasil depende menos do gás boliviano
Do ponto de vista do Brasil, Biazzi Couto avalia que, atualmente, “em contraste com a conjuntura do final dos anos noventa”, quando o gás boliviano era primordial, a dependência do produto é menor.
“Parece interessar menos à gestão da Petrobras esse tipo de vínculo político e acordo de longo prazo, já que a empresa extrai gás natural na camada do pré-sal e o preço do GNL [gás natural liquefeito] importado diminuiu consideravelmente”, afirmou o especialista, que também menciona a “retirada do papel” da estatal “como empresa indutora da industrialização, para algo mais próximo de uma empresa privada”.
Do ponto de vista da Bolívia, o professor do CEFET diz que a possível vantagem do novo acordo pode ser a “possibilidade da estatal boliviana vender diretamente os excedentes de gás natural às empresas brasileiras interessadas e às revendedoras”.
Ao mesmo tempo, no atual cenário econômico, o especialista diz que isso “não garante receitas estáveis e seguras”, portanto, “Arce deve buscar a renegociação, tendo como horizonte contratos mais longos e vínculos estratégicos com o Brasil e a Petrobras, que incentivem investimentos na expansão da exploração de gás natural do país e da indústria petroquímica”.
Novo governo precisa se estruturar
Em um contexto como esse, com pandemia e crise mundial, Marcial Suarez não acredita em “mudança radical em política interna ou externa” por parte do político do MAS. O professor da UFF diz ainda que o “mais pragmático” para a Bolívia é “manter um bom acordo com o Brasil”, mas, “antes de mais nada”, “deve haver a organização do novo governo e uma necessária estabilização”.
“Segundo declarações do agora eleito presidente, a questão central sobre os acordos gira em torno da legitimidade do governo interino que os assinou após a destituição de Morales, não necessariamente dos valores envolvidos. Algum tipo de avaliação deverá ser realizada por este novo governo, mas não acontecerá antes da formação dos ministérios e da estruturação do gabinete”, disse Suarez.