Enquanto os portais do mundo inteiro contabilizam as mortes causadas pelo bombardeio constante de Gaza como se fossem meros números, centenas de palestinos que vivem em Cuba vivenciam cada minuto o terror que transformou para sempre sua terra. A maioria deles são jovens que estão estudando na ilha.
“Os bombardeios foram recorrentes durante toda a minha vida. Eu cresci com Gaza sendo bombardeada duas ou até três vezes por ano pelo Estado de Israel. Todos os anos eles matam pessoas, todos os anos eles ferem pessoas”, diz Abdelhadi Bassam ao Brasil de Fato, sem esconder a angústia e a indignação em sua voz.
Estudante do segundo ano da Escola Latino-Americana de Medicina (ELAM) em Cuba ele acompanha a escalada de violência militar em sua terra à distância. Na véspera da invasão terrestre feita por Israel, na última sexta-feira (27/10), a precária conexão com Gaza pela internet foi completamente cortada.
A angústia que acompanhava Abdelhadi e seus companheiros se transformou em terror quando todas as comunicações com Gaza foram cortadas. Durante 34 horas, qualquer informação que pudesse chegar diretamente a Gaza foi eliminada.
Um dia após o início do apagão, no dia 28 de outubro, o porta-voz militar israelense Daniel Hagari publicou um vídeo no X (antigo Twitter) reiterando, mais uma vez, que, para sua “segurança imediata”, os residentes do norte de Gaza e da Cidade de Gaza deveriam “mudar-se temporariamente para o sul”. Nessa mensagem, Hagari anunciou novamente que Israel intensificaria seus ataques. O que acabou ocorrendo durante todo o fim de semana, coincidindo com um apagão total nas comunicações.
A preocupação entre os estudantes palestinos na ilha foi aumentando à medida que eles tentavam juntar as poucas informações que estavam circulando. “Ninguém nunca fala sobre isso. Na maioria das vezes, nem mesmo sabemos por que, ou o que aconteceu. Apenas somos bombardeados por algumas horas ou dias seguidos. Bombas que caem entre pessoas que estão indo ao supermercado, à escola ou que estão apenas em casa”, conta sobre sua experiência com os bombardeios em Gaza.
Destruição sem precedentes
Bombardeios se intensificaram nos últimos dias e atingiram nesta terça-feira (31/10) o maior campo de refugiados em Gaza, o campo Jabali provocando a morte de ao menos 50 pessoas e deixando outras 150 feridas. A escalada da ofensiva israelense contra a população palestina têm gerado uma série de respostas diplomáticas pelo mundo e nesta quarta-feira (01/11), o governo da Jordânia, aliado-chave de Israel, convocou seu embaixador no país.
De acordo com o Ministério da Saúde de Gaza, os incessantes ataques israelenses já causaram quase 10 mil mortes, sendo mais de 4.000 crianças.
O primeiro bombardeio em 2008
“A primeira experiência que lembro foi em 2008”, diz Bassam. “Israel começou a bombardear toda a Faixa de Gaza. Eu voltava da escola para casa e, no caminho, uma bomba caiu em um escritório da polícia. Eu só tinha sete ou oito anos de idade. Fiquei muito assustado, estava sozinho e, de repente, não sabia para onde ir. Lembro que corri o mais rápido que pude em direção à casa.”
As imagens daquele dia marcaram sua vida para sempre. Bassam lembra que foi a primeira vez que ouviu falar da ocupação. Quando seu pai o encontrou, ele o abraçou, tentando acalmar as lágrimas que brotavam nos olhos de seu filho cheio de medo. Um abraço que também tentava acalmar sua própria angústia.
Seu pai lhe contou sobre a ocupação daquelas terras de oliveiras palestinas, das quais há décadas tentam expulsar seu povo. As imagens desse dia fatídico, o som dos bombardeios, os alarmes, os gritos das pessoas que buscavam refúgio, não foram uma exceção. Para os palestinos, a violência é uma parte reconhecível da vida cotidiana.
“Estamos vivendo em tempos muito difíceis. Estamos sempre nervosos e angustiados. Há semanas, quase não durmo. Acordo muito cedo e vou para a cama muito tarde, assistindo ao noticiário”, diz Abdelhadi Bassam, com a voz trêmula.
Desde o início dos bombardeios em Gaza, a Escola Latino-Americana de Medicina, onde Abdelhadi estuda, adiou as datas dos exames três vezes. O objetivo era acompanhar os cerca de 100 estudantes palestinos com bolsa de estudos na instituição. No entanto, quando a data finalmente chegou, Abdelhadi, como muitos de seus colegas de classe, não pôde fazer mais do que entregar uma folha de papel em branco com apenas seu nome.
“Como muitos de meus colegas de classe, minha família está em Gaza. Estamos sempre preocupados com a possibilidade de que algo aconteça com ela. Nossas famílias estão sob ataque israelense o tempo todo. Durante todo o dia, verificamos as listas de mortos, esperando que um nome familiar, um membro da família, um amigo ou um vizinho não apareça. E, no entanto, a grande maioria de nós conhece alguém que foi martirizado”, diz ele.
Twitter/State of Palestine
Ataques israelenses são constantes na Faixa de Gaza, aterrorizando civis que moram na região
'Mártir' é a forma como os palestinos se referem aos seus mortos, mortos pelas forças de ocupação israelenses. O termo é usado de forma indistinta para se referir a combatentes ou civis. Para eles, todos os mortos pela causa palestina são mártires.
Até o momento, pelo menos 29 jornalistas foram mortos nos bombardeios de Gaza nas últimas semanas. Enquanto os que continuam seu trabalho no enclave costeiro precisam enfrentar a constante restrição das telecomunicações.
Desde criança, eu queria ser médico”, lembra Abdelhadi. “Meu pai está doente e isso foi algo que me motivou a estudar medicina. Para que pudesse ter um médico na família e cuidar dele. É muito difícil ter acesso ao sistema de saúde em Gaza. Mas eu também quero ser médico para poder ajudar meu povo. Como estudante palestino, quero servir ao meu povo”.
Bombardeio a hospitais
“Vemos o bombardeio de hospitais, como foi o caso do bombardeio do Hospital Batista de Al-Alhi. Isso é algo que nos atormenta como palestinos. Mas, ao mesmo tempo, isso nos dá uma força enorme para querermos nos tornar médicos e nos motiva ainda mais a servir nosso povo em momentos difíceis como este”, reflete.
A formação oferecida pela Escola Latino-Americana de Medicina faz parte dos acordos de colaboração do povo cubano com o povo palestino e permite que eles façam uma contribuição fundamental para a população dos territórios ocupados: fortalecer um sistema médico que é alvo de ataques constantes, diretos ou por falta de suprimentos.
Todos os anos, Cuba oferece bolsas de estudo gratuitas para que palestinos de Gaza, da Cisjordânia ou que vivem em campos de refugiados possam estudar medicina.
Essas relações estreitas com a causa palestina e o governo cubano não são recentes, nem respondem ao contexto mais imediato. Pelo contrário, elas fazem parte de uma estratégia central do projeto revolucionário cubano em sua política externa de solidariedade.
“Nós, como palestinos, levamos Cuba em nossos corações. Cuba sempre foi parceira de nosso país. Sempre apoiou e sempre demonstrou solidariedade com a Palestina em todos os momentos. E ainda mais com os tempos difíceis pelos quais a Palestina está passando”, ressalta Abdelhadi.
“É muito difícil estar longe de minha família neste momento. Mas também sei que tenho uma missão, estudar para poder estar lá no futuro. Ajudar a salvar a vida de todas as crianças que estão sendo bombardeadas” afirma com profunda convicção Abdelhadi.
Contexto
O cerne da questão árabe-israelense é a forma como o Estado de Israel foi criado, em 1948, com inúmeros pontos não resolvidos, como a esperada criação de um Estado árabe na região da Palestina, o confisco de terras e a expulsão de palestinos que se tornaram refugiados nos países vizinhos.
A decisão pela criação dos dois estados foi tomada no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU) e aconteceu sem a concordância de diversos países árabes, gerando ainda mais conflitos na região.
Ao longo das décadas seguintes, a ocupação israelense nos territórios palestinos – apoiada pelos EUA – foi se tornando mais dura, o que estimulou a criação de movimentos de resistência. Foram inúmeras tentativas frustradas de acordos de paz e, na década de 1990, se chegou ao Tratado de Oslo, no qual Israel e a Organização para Libertação da Palestina se reconheciam e previam o fim da ocupação militar israelense.
O acordo encontrou oposição de setores em Israel – que chegaram a matar o então premiê do país – e de grupos palestinos, como o Hamas, que iniciou sua campanha com homens-bomba. Após a saída militar israelense das terras ocupadas em Gaza, ocorreu a primeira eleição palestina, vencida pelo Hamas (2006), mas não reconhecida internacionalmente. No ano seguinte, o Hamas expulsou os moderados do grupo Fatah de Gaza e dominou a região.
Em 7 de outubro de 2023, o Hamas lançou sua maior operação até então, invadindo o território israelense e causando o maior número de mortes da história do país, 1,4 mil, além de fazer cerca de 200 reféns. A resposta israelense vem sendo brutal, com bombardeios constantes que já causaram a morte de milhares de palestinos, além de cortar o fornecimento de água e luz, medidas consideradas desproporcionais, criticadas e rotuladas de “massacre” e “genocídio” por vários organismos internacionais.