A guerra civil no Sudão, que já matou de 10 mil pessoas e deslocou outras 6,5 milhões pessoas nos últimos oito meses, segundo dados revelados nesta sexta-feira (08/12) pelo Al Jazeera, tem se mostrado um dos mais sangrentos conflitos da atualidade, considerando a crueldade das ações cometidas pelas forças que nele atuam, segundo a opinião da professora Patrícia Teixeira, as violações contra as mulheres já é uma das maiores do mundo.
No dia 15 de abril de 2023, se iniciou um conflito civil no Sudão. Facções militares rivais estão em uma grande disputa de poder. Os embates ocorrem sobretudo na capital Khartoum e na região de Darfur. Os grupos rivais vêm sendo identificadas como, de um lado, o exército leal ao general Abdel Fattah al-Burhan e, do outro, paramilitares das Forças de Apoio Rápido (conhecidas pela sigla em inglês RSF), liderados por Mohamed Hamdam Dagalo (conhecido como “Hemetti”). As informações são que as RSF começaram um ataque surpresa simultâneo contra bases do exército naquele dia.
A SAF, Forças Armadas do Sudão, tem cerca de 200.000 soldados e é chefiada por Abdel Fattah al-Burhan; funciona mais como um exército regular. Do outro lado, entretanto, estima-se que a RSF tenha entre 70.000 e 100.000 e é chefiada por Hemetti. A RSF funciona mais como uma força de guerrilha. Em Novembro, cerca de 800 a 2.000 pessoas, principalmente civis, foram mortas em combates. Outras 8.000 pessoas foram deslocadas, muitas delas fugindo para o país vizinho Chade. Até o momento, já existem cerca de meio milhão de sudaneses no Chade que foram deslocados.
“Esta tornou-se a maior crise de deslocamento no continente, pelo menos, e possivelmente no mundo”, disse Will Carter, diretor do Conselho Norueguês para Refugiados no Sudão, aos ouvintes na semana passada durante uma conferência online realizada pelo Centro de Refugiados.
Na situação de crise sudanesa, os Estados Unidos buscou interferir pensando sobretudo nos negócios que poderiam ser feitos. No governo Trump, foi proposto ao Sudão, que se fizesse o acordo de normalização com Israel, o país seria removido da lista de Washington de estados que são sancionados por apoiarem o terrorismo e o investimento poderia fluir, as transferências de capital seriam facilitadas, as restrições à exportação e as licenças onerosas seriam retiradas. Embora tenha sido uma política feita com a arrogância de Trump, criticada pelos Democratas na época, o atual governo Joe Biden de seguir os mesmos passos demonstra claramente a fragilidade de qualquer corrente progressista que se possa alegar existir na política externa dos Estados Unidos.
Consultada por Opera Mundi, especialista em Sudão, a professora Patrícia Teixeira, leciona a respeito da História da África na Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), e afirma com preocupação as constantes violações dos direitos humanos no conflito em curso, em especial a vulnerabilidade extrema de mulheres civis.
Ao ser questionada sobre as origens da disputa e o porquê de ocorrerem, ela nos diz que “o que aconteceu no 15 de abril foi um contragolpe dentro de um governo que já tinha dado um golpe, para criar obstáculos da transição do poder para as mãos civis, ou seja, de um governo democrático com eleições no Sudão. O fim da ditadura de Omar Bashir, que durou 30 anos, e a luta sociedade sudanesa ampliada, com intelectuais, juventudes, mulheres, trabalhadores e diversas organizações sociais trabalhando por um governo mais livre e democrático, foi um processo interrompido pelo golpe de Estado, e neste ano houve o contragolpe, justamente porque para se dar um golpe militar se apoiou em milícias paramilitares, como a do Hemetti”.
O plano de transição democrática aqui mencionado, foi proposto pelos militares e patrocinado pelos Emirados Árabes, Grã-Bretanha e Estados Unidos, e de forma geral apoiado por outros países, inclusive a Rússia e a União Europeia. A oposição de caráter nacionalista, de esquerda são críticos do plano e do governo militar, enquanto alguns representantes da oposição liberal o receberam bem.
Mahmoud Hjaj – Agência Anadolu
Manifestantes queimam pneus enquanto protestam contra o acordo assinado entre militares e civis, em 06 de abril de 2023
O general al-Burhan vem procurando fortalecer sua posição estreitando suas relações com o Egito. Ele também conta com apoio dos islamitas no país e já foi alvo de protestos massivos devido às visitas de representantes israelenses e o processo de normalização com o governo de Israel, que tem interesse em neutralizar a oposição internacional e reforçar sua segurança no Mar Vermelho.
As milícias de Hemetti, estão diretamente implicadas com a exploração do ouro, através do seu poder sobre minas no Darfur, Hemetti se tornou o maior negociador de ouro do país usando a empresa Al Junaid. Tem também envolvimento com a guerra anterior que ocorreu no Darfur, que tomou uma dimensão genocida. A respeito de Mohamed Hamdam Dagalo (Hemetti) e a sua crítica com a visita israelense ao país, bem como seus sinais de aproximação com a Rússia, a especialista nos diz que “dentro da situação sudanesa, e da guerra que está ocorrendo no Sudão, não altera o quadro atual interno de crise humanitária gravíssima. As relações diplomáticas do Sudão e o posicionamento dos líderes em confronto, ignoram a situação dos civis em sofrimento que estão sendo reprimidos, oprimidos e as violações que as mulheres estão sofrendo, estão sendo ignoradas pelos olhos do mundo. Além do enorme cerceamento político que esse conflito provoca na vida da sociedade civil”.
“O jogo político do Hemetti, para tentar buscar alguma legitimidade política não visa mudar a difícil situação de vida da população nativa que teve os seus direitos sociais ainda mais restringidos”.
Para Patrícia, “os caminhos para a paz nesse momento são necessariamente a comunidade das nações exigir junto com os civis que estão sendo perseguidos politicamente e exigir as eleições que deveriam ter ocorrido em 2019 e reivindicar representatividade da população em espaços importantes da governabilidade do país. E sobretudo, imediatamente, pautar o fim das perseguições políticas e das violências misóginas sofridas pelas mulheres”, conclui.
Em relação às violências sexuais e de gênero tenham aumentado com a explosão da guerra, já existia uma epidemia das violações contra mulheres e meninas muito antes da guerra iniciada em 15 de Abril. No passado, existiam mecanismos comunitários e vias de políticas públicas para lidar com a violência de gênero, mas agora as vítimas são deixadas à própria sorte, sofrendo gravidezes indesejadas fruto de abusos sexuais, traumas e complicações graves. O estigma social é enorme para lidar com casos como esses.
A situação de Estado de sítio interrompeu todas as instalações de delegacias, e demais órgãos estatais, tornando impossível denunciar e investigar os constantes abusos sofridos pelas mulheres e meninas sudanesas.
No dia 1º de dezembro, o Conselho de Segurança da ONU concordou em encerrar a sua Missão Especial de Assistência Transicional Integrada no Sudão, também conhecida como UNITAMS. O governo sudanês solicitou o fim da missão porque “não estava correspondendo às expectativas”.