Atualizada em 04/05/2018 às 17:58
Sábado, 24 de maio de 1749, às 6h da manhã, a senhorita Julie, na verdade Catherine Huet, superiora da Salpêtrière em Paris, persuadida que seria presa, deixa precipitadamente o estabelecimento com 20 de seus funcionários. É o início do Caso do Hospital Geral. Cercado de motins e rumores, com a pedofilia como pano de fundo, duraria 8 anos e estremeceria o trono de Luis XV. O hospital, estabelecimento de ‘reclusão’ dos pobres, havia sido fundado pelos devotos laicos da Companhia do Santo Sacramento sob o ministério do cardeal Jules Mazarin. Funcionara por mais de 90 anos sob a mais total opacidade.
Dividido em Salpêtrière (para as mulheres e as meninas); Bicêtre (para os homens) e Pitié (para os meninos), o hospital, que o rei dotava de recursos e isentava de impostos, era o lugar de todas as exigências, violências e desfalques em detrimento dos pobres aos quais tinha por obrigação socorrer.
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Litogravura de 1857 feita por Armand Gautier retratando os jardins do Salpêtrière
O estabelecimento que integrava a “Obra das Crianças Abandonadas” criada por São Vicente de Paula, tinha direito de vida e morte sobre os milhares de miseráveis que uma impiedosa legislação os obrigava a lá se recluir. Desde sua fundação em abril de 1656, nenhum outro socorro público ou privado poderia atender aos miseráveis.
Após a dissolução da Companhia do Santo Sacramento, os jansenistas — membros da seita religiosa inspirada nas ideias do bispo dogmático Cornelius Jansen — retomaram as rédeas do hospital onde fizeram reinar a ordem moral e o terror de um sistema rigidamente concentracionário.
As denúncias eram frequentes – violências, evasão de fundos e assédios -, mas não encontram eco num parlamento, a um só tempo juiz e parte. Porém atingiram o rei por intermédio dos padres do hospital, que se queixavam das ações do pessoal abertamente jansenista, quando a bula papal Unigenitus condenava duramente o jansenismo.
Em 1746, Luis XV encarrega Christophe de Beaumont, por ele nomeado arcebispo de Paris, para pôr ordem na casa. Suspeitando que as “irmãs”, na verdade laicas, aproveitavam as saídas pretensamente destinadas a se confessar para fazer a “festa”, decide que deveriam se confessar no interior do estabelecimento. Tomadas de pânico, a irmã e suas companheiras resolvem desertar na manhãzinha de 24 de maio. Começava o affaire do século.
Em 12 de julho de 1749, o arcebispo força a eleição de uma amiga, Madame de Moysan, para o conselho de administração. Os administradores se demitem em bloco. Os magistrados jansenistas lançam uma virulenta campanha contra a nova administração e organizam a interrupção das doações. A nova superintendente enfrenta-os. O rei e o arcebispo metem a mão no bolso a fim de cobrir os déficits.
Um ano depois, em 23 de maio de 1750, uma multidão toma de assalto o comissariado da rua Saint-Honoré onde se havia refugiado um alcaguete da polícia, um tal Labbé, protegido do chefe da polícia, Nicolas Berryer, que era acusado de ladrão de crianças. A polícia se viu forçada a entregar o homem que foi espancado à morte, depois arrastado pelos pés até a porta da casa de Berryer.
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Era o último episódio da “Marcha Vermelha”, levante popular que terminaria em sangue e lágrimas. Por razões desconhecidas, mas em seguida a um decreto contra os mendigos, os dependentes do Hospital Geral disfarçados sequestram à força, em plena rua, crianças que seus pais enlouquecidos exigiam de volta.
O distúrbio de 23 de maio de 1750 em Paris foi o último e o quinto em dois dias. A polícia não se mostrou capaz de controlar a situação, os guardas-franceses se alinharam ao lado do povo, falava-se de um príncipe bebedor de sangue.
Encarregado da investigação, o Parlamento condena três populares à forca enquanto os sequestradores de crianças se livram até de multa, provocando a indignação popular.
Em 24 de março de 1751, o rei publica as reformas que queria ver aplicadas no hospital. Reservando ao arcebispo as questões pertinentes à religião e aos sacramentos, o novo regulamento exigia transparência total sobre as contas, os investimentos, as nomeações e o tratamento destinado aos enfermos.
Para entrar em vigor, o regulamento deveria ser aprovado pelo Parlamento que recusa a procede à aprovação de outro, que desfaz tudo o que o rei propunha. Esse ato de rebelião era um verdadeiro golpe de Estado que retirava do rei o poder legislativo para remetê-lo aos juízes.
Luis XV ordena aprovar a declaração diante dele e exige que tudo o que dissesse respeito ao hospital fosse retirado da alçada dos juízes. Estes, em protesto, desencadeiam uma greve geral que paralisa a máquina judiciária.
O rei ameaça demitir os rebeldes, porém até o atentado de Damiens em janeiro de 1757 (enquanto Luis XV saia do Palácio, um homem se precipita e assesta uma punhalada em suas costas. Esse homem se chamava Robert Damiens.), o rei só poderia agir pelos caminhos da justiça. Por quê tal resistência a propósito de um estabelecimento que se pretendia apenas de caridade?
O estudo do registro de entradas e saídas das crianças do Hospital Geral permite entender que milhares delas desapareceram e que parece terem sido vítimas de crimes sexuais. A recusa da magistratura a qualquer possibilidade de ver o que se passava no hospital pode ter significado esconder a extensão de um gigantesco tráfico de crianças pobres tendo por pano de fundo a pedofilia.
A “Marcha Vermelha” que por muito tempo foi vista apenas como um rumor, pode bem ter sido a revolta de pais informados dos crimes perpetrados contra as crianças cativas à sombra da maior instituição laica do Antigo Regime: o Hospital Geral.
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