Gomes Eanes de Zurara é certamente um nome pouco familiar hoje, inclusive para muitos portugueses, compatriotas deste cronista do século XV próximo ao Infante D. Henrique. Porém, o recente documentário norte-americano Marcados, a “História do Racismo nos Estados Unidos”, no ar pela Netflix, imputa a Zurara a “autoria” do pensamento racista antinegro.
O motivo? A maneira como, em “Crónica dos Feitos da Guiné”, cuja primeira versão data de 1453, Zurara narra a chegada dos portugueses à costa ocidental da África. A obra teria sido amplamente lida na Europa de então.
As centenas de pessoas capturadas durante essas expedições e levadas a Portugal como escravas foram descritas como “bestas” em busca de salvação. No relato, o cronista régio diz que elas “viviam em perdição das almas e dos corpos”, sem qualquer conhecimento e em estado de “ociosidade bestial”.
Esse fato está longe de ser banal para o historiador norte-americano Ibram X. Kendi, e terá servido para justificar o tráfico e a escravização de africanos. Em “Stamped from the begining” (ou “Carimbado desde o início”, publicado em 2016), vencedor do National Book Award e que claramente inspira o documentário, Kendi afirma que Zurara assentou as bases para a ideia de uma raça superior (a branca) e outra inferior e homogênea (a negra).
No documentário, Kendi vai além e diz que Zurara inventou a “negritude”.
“Ao construir uma justificativa de evangelização do Infante D. Henrique para escravizar povos africanos, Zurara reduziu os cativos a bárbaros que precisavam desesperadamente não apenas de salvação religiosa, mas também civil”, escreveu Kendi, fundador do centro de investigação e políticas antirracistas da American University (Washington DC).
Zurara tratou os africanos com um misto de condescendência e medo. Alguns pareciam saídos do próprio inferno, dizia. Quase mil escravos negros foram trazidos da África para Lisboa nessas primerias expedições de meados do século XV. Foi um momento crucial. Os escravos, que sempre existiram na Europa, vinham do Leste europeu, dos povos conhecidos como eslavos (daí vem o substantivo escravo). Porém, a partir da introdução dos africanos pelos portugueses, a cor negra passou a ser identificada com a cor dos escravos.
Zurara: humanismo ou apologia ao racismo?
O que pensam os portugueses sobre a teoria de Kendi, segundo a qual Portugal teria inventado o racismo antinegro?
Pedro Schacht Pereira, que é professor associado de Estudos Portugueses e Ibéricos da Universidade de Ohio (EUA), esclareceu que o documentário, por questões da comunicação visual, é menos rigoroso que o livro e “apresenta alguns erros factuais”.
“O livro [de Kendi] é importante e um esforço de extrair o olhar norte-americano da dimensão autocentrada que o caracteriza tantas vezes”, explicou o acadêmico português a Opera Mundi.
Porém, para Schacht Pereira, Kendi se engana no filme quando afirma que Zurara inventou a negritude. Seria absurdo datar sua invenção, visto se tratar de “uma construção social e ideológica com várias fases” – que incluem períodos da Antiguidade até o colonialismo moderno. “O pensamento que se expressa em Crónica da Guiné é sem dúvida indispensável para se entender o que será mais tarde a ideia de raça, mas não é um momento inaugural”.
Mais do que a gênese do racismo, o texto expressaria uma ideologia que já circulava na corte portuguesa.
O professor também refuta a tese anacrônica de que o livro de Zurara fosse uma espécie de best seller na época, como afirma Kendi no filme. “É perfeitamente plausível que a obra tenha sido conhecida de leitores europeus nos séculos XV e XVI […]. No entanto, a Crónica da Guiné esteve perdida durante séculos e foi encontrada novamente no século XIX em Paris, tendo ajudado de novo a argumentar a favor da primazia portuguesa no contexto da Conferência de Berlim (1884-5)”, disse ele, quando as potências imperialistas dividiram o continente africano entre si, à revelia dos interesses das populações locais.
Schacht Pereira admite que Portugal ainda tem uma avaliação indulgente a respeito do papel do Império português na construção discursiva do racismo. “O pensamento de Zurara sobre a negritude é ensinado tradicionalmente [em Portugal] como um exemplo de humanismo, sendo silenciada a dimensão de apologia da escravidão baseada na raça” Isso se deve, entre outros fatores, ao colonialismo português na África, que vigorou até 1975.
Se é certo que os relatos de Zurara serviriam como “justificação prematura” do tráfico transatlântico, Schacht Pereira assinala que outros pensadores também contribuíram para o racismo contra os negros, como os padres António Vieira (no séc. XVII) e Manuel Ribeiro Rocha (séc. XVIII).
Também consultado por Opera Mundi, o professor associado da Universidade de Lisboa José da Silva Horta assume que o livro de Zurara faz uma hierarquização que inferioriza as populações negras. Seria uma espécie de “escala de estética em que o negro está na base, porque, em geral, o branco é tido como o padrão da beleza” naquela época.