São estreitos os laços entre estética e política, mesmo que muitas vezes a tendência da crítica especializada seja apartar esses dois eixos, de modo a apostar em uma análise da literatura em que o conteúdo fala por si, independente de uma biografia autoral pré-estabelecida.
Esse debate sobre a separação entre autor e obra, criador e criatura, circula historicamente a cada nova guinada da indústria cultural e do mercado. Nesse sentido, é interessantíssimo partirmos da ideia de cânone e do que caracteriza a sua fundação exatamente para percebermos algumas linhas traçadas por Roberto Bolaño em A Literatura Nazista na América, livro que segue um caminho experimental de exploração da linguagem entre a ficção e a história social do continente americano.
Jorge Luís Borges, em O Livros dos Seres Imaginários, publicado originalmente em 1957, faz uma espécie de catalogação de criaturas impossíveis, míticas, mágicas, que ao serem inventariadas na estrutura-livro, isto é, em um registro formal, adquirem uma outra qualidade de existência, passando a fazer parte da realidade – não a realidade material, mas a realidade concernente à história da ficção e do imaginário. A partir dessa estrutura de catalogação, Bolaño faz um exercício similar em A Literatura Nazista na América, criando pessoas/personas/personagens que incorporam em seus atos políticos, cotidianos e de produção literária alguns aspectos de uma mentalidade nazifascista. Valendo-se de certa carga irônica (sobretudo quando relaciona eventos trágicos à banalidade da existência dessas personagens ou quando se refere aos órgãos sexuais masculinos no sentido de estabelecer sua descrição como um parâmetro de poder), Bolaño faz o inventário de posturas notadamente preconceituosas, racistas, eugenistas, totalitárias, detectáveis em projetos estéticos de literatura, investigando dessa maneira as peças de um imenso arquétipo da literatura nazifascista no continente americano.
Susan Sontag, no livro intitulado Sob o Signo de Saturno, apresenta um ensaio a propósito do trabalho de Leni Riefenstahl, cineasta favorita de Hitler, autora do documentário Triunfo da Vontade, material que estabelece uma relação icônica com a ideologia e a propaganda nazista. A grande questão que se impõe neste ensaio de Sontag é a filiação de Riefenstahl a uma estética autoritária erigida sobre referenciais de uma arte clássica, olímpica, sublime.
Uma boa maneira de observarmos como opera essa forma artística é justamente através do discurso de Roberto Alvim, secretário da Cultura indicado pelo presidente Jair Bolsonaro no começo de seu governo. Impossível esquecer a menção direta ao discurso de Joseph Goebbels, ministro da propaganda da Alemanha nazista, na apresentação das diretrizes de secretariado de Roberto Alvim. Na ocasião, Alvim disse: “A arte brasileira da próxima década será heroica e será nacional, será dotada de grande capacidade de envolvimento emocional, e será igualmente imperativa, posto que profundamente vinculada às aspirações urgentes do nosso povo – ou então não será nada.”
Uma mensagem declaradamente vinculada aos dizeres proferidos por Goebbels na Alemanha nazista: “A arte alemã da próxima década será heroica, será ferreamente romântica, será objetiva e livre de sentimentalismo, será nacional com grande pathos e igualmente imperativa e vinculante, ou então não será nada.”
Alvim, assim como Luiz Fontaine de Souza e Amado Couto, poderia ser uma personagem de A Literatura Nazista na América, haja vista que mesmo antes de sua grande e vergonhosa exposição como secretário da Cultura, o diretor de teatro já revelava uma busca por formas puras, em uma teatralidade essencialista e extremamente associada a princípios formais de efeito monumental.
Flickr/Secretaría de Cultural Ciudad de México
Escritor chileno faz o inventário de posturas notadamente preconceituosas, racistas, eugenistas, totalitárias
O que chama a atenção no episódio Roberto Alvim é justamente o que Bolaño frisa em A Literatura Nazista na América: a configuração de uma rede de conexões, afetos e possibilidades estéticas que perpassa as condições ideológicas e sobrevive pela cordialidade de classe. Chico Buarque, artista declaradamente de esquerda, bem como Vladimir Safatle e Jô Soares, chegaram a realizar parcerias com Roberto Alvim. Isso nos aponta uma face da questão muitas vezes ignorada pela síntese binária das disputas políticas. Bolaño toca nesta ferida: as relações de poder e, portanto, de propagação da cultura simbólica de fundo nazifascista na América não contam apenas com uma estrutura linear e horizontal, mas são baseadas em complexidades sociais, isso é, existe uma verticalidade móvel, dialética, entremeada à horizontalidade previsível.
Se fascistas só andassem com fascistas, como podemos ver nas gangues de skinheads das grandes metrópoles, seria um pouco mais fácil detectar sua presença nos espaços de produção estética e de decisão política. Mas não, o que protege a mentalidade e ação nazifascista da percepção imediata é sua condição variável e plural. Não existe um modelo de fascista ou uma natureza própria do fascismo, ainda que certos ícones nazifascistas sejam modulados como referências tácitas, tais como suásticas, cruzes de ferro, coturnos, cortes de cabelos – toda uma semiótica reconhecível exatamente por já ter sido legendada pela história como fontes de alerta. No entanto, na contemporaneidade americana, tão próxima e ao mesmo tempo tão alheia aos próprios regimes de exceção, o que existe no cotidiano são indícios, rastros, vestígios implícitos do autoritarismo, muitas vezes absolutamente fantasmáticos e invisíveis – expostos no texto de Bolaño com mordacidade crítica (por exemplo: Editora El Cuarto Reich Argentino).
Em Epílogo para Monstros, última parte do livro de Bolaño, podemos ver, no tópico 1, uma lista de convivas também fictícios das figuras apresentadas ao longo do livro, tratam-se de outros romancistas, poetas, ilustradores, diretores e produtores de filmes pornográficos, pessoas relacionadas aos esportes, militares, dentre outros, que constituem essa imensa e silenciosa rede de manutenção do discurso nazifascista no continente americano. No tópico 2, Bolaño nos apresenta uma relação de editoras, revistas e lugares adotados como meios e territórios de autores e agentes nazifascistas encobertos pelos véus da neutralidade.
A epígrafe de Augusto Monterroso, escritor hondurenho, nos oferece uma pista a propósito da questão das redes de proteção: “Quando um rio é lento e se conta com uma boa bicicleta ou um cavalo, aí sim é possível banhar-se duas vezes (e até três, dependendo das necessidades higiênicas de cada um) no mesmo rio.”
Monterroso parece apresentar um diálogo entre a máxima filosófica de Heráclito de Éfeso (séc. V a.C) e a modernidade com suas tecnologias de transporte e velocidade que ultrapassam o tempo e o comportamento natural do rio. Se para Heráclito ninguém se banha no mesmo rio duas vezes, porque suas águas sempre se renovam, Monterroso sugere o contrário, é possível antecipar-se à efemeridade do rio quando se possui meios para tanto, e as águas não têm tempo de se renovar, continuam carregando os resíduos daquele primeiro banho que, por conseguinte, irá poluir o segundo banho. Nesse sentido, é possível também mencionar as linhas históricas de Marx em Manifesto do Partido Comunista: “Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”.
A família Mendiluce, do primeiro capítulo do livro, nos expõe uma típica genealogia da presença do fascismo na educação burguesa. Edelmira Mendiluce, nascida no final do século 19, em Buenos Aires, “desprezava literatura em geral e a poesia em particular (embora de vez em quando fosse à ópera) e sua conversa estava no mesmo nível da de seus peões e operários. Sua única qualidade reconhecida era sua inesgotável fortuna” (p.15).
Juan Mendiluce, filho de Edelmira, tem como apoio editorial as revistas Letras Criollas e La Argentina Moderna, fundadas por sua mãe, assim como diversos jornais de Buenos Aires “que acolhem entusiasmados ou estarrecidos suas diatribes contra Cortázar, a quem ele acusa de irreal e cruel, e contra Borges, a quem acusa de escrever histórias que são ‘caricaturas de caricaturas’ e de criar personagens há muito esgotados (…)” (p. 28).
Há a irmã de Juan, Luz Mendiluce, cuja evidência irrefutável de sua tendência à mentalidade nazifascista é uma foto na qual Hitler a segura no colo, com poucos meses, que se torna uma verdadeira preciosidade íntima com o passar dos anos. A certa altura da vida, Luz acaba apaixonando-se por uma poeta, Cláudia, o que denota um conflito moral face a sua educação rígida, mas não chega a viver um romance real, apenas uma relação sublimada em leituras de poemas e telefonemas. O desfecho do amor platônico das duas é o desfecho da trilogia da família Mandiluce no livro: tomada de paixão, Luz pega seu carro e dirige até Rosário, cidade onde Cláudia mora. Pretende declarar-se para ela, mas não é possível, assim, que chega a Rosário, à casa de Cláudia, descobre por seus pais que “um grupo de desconhecidos sequestrou a jovem poetisa. Luz move céus e terra, recorre às suas amizades, amigos de Cláudia dizem que os militares é que estão com ela. Luz se nega a crer e espera. Dois meses depois o cadáver é encontrado num lixão na zona norte da cidade. No dia seguinte Luz retorna a Buenos Aires em seu Alfa Romeo. No meio do caminho se espatifa contra um posto de gasolina. A explosão é considerável.” (p.36)
Outros eventos mesclando tragédia e sarcasmo permeiam as vidas apresentadas no livro. Contudo, o único capítulo que envolve Bolaño em primeira pessoa é aquele sobre Carlos Ramírez Hoffman, autor nascido em Santiago do Chile e radicado na Espanha. Trata-se, na verdade, de um conto e seu desenvolvimento não está tão sublinhado pelos aspectos de descrição catalográfica dos outros capítulos.
Com um arco temporal extenso, o conto basicamente apresenta a busca por Carlos Ramírez, um poeta/performer que produzia no início de sua carreira projetos artísticos perturbadores. No decorrer da narrativa Ramírez se torna um símbolo de ruína pessoal e política, perseguido por Bolaño e pelo policial Romero (um dos policiais mais famosos da época de Allende) como um poema-enigma a ser resolvido – em uma chave talvez similar à de Sontag em busca da crítica ao cinema de Riefenstahl, afinal, para escritores-pensadores, a investigação das origens e tecnologias do mal também serve, conscientemente, de matéria-prima e alimento do trabalho com as ideias e com as palavras.