“Se você quer um final feliz, depende da onde você termina a sua história”. Esta citação de Orson Welles vem à mente ao observar as imagens de um Brasil de avenidas transbordadas de centenas de milhares de manifestantes em todos os cantos do Brasil. A Greve Nacional em Defesa da Educação, realizada nesta quarta-feira (15/5), convocada pela CNTE (Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação, ligada à CUT), pela UNE (União Nacional dos Estudantes) e apoiada por inúmeras entidades sindicais e estudantis regionais em todo o país, se fez notar nas capitais, cidades do interior, ruas e praças, dentro dos colégios e universidades, registrando eventos em 198 cidades (segundo dados da Folha de São Paulo). Somente na cidade de São Paulo houve a presença de mais de 200 mil pessoas na manifestação, segundo os organizadores – embora a polícia afirme que foram somente 15 mil pessoas, cifra que é desmentida facilmente quando se vê as tomadas aéreas da manifestação. Não se pode negar a imensidão das marchas, todas elas do tamanho do Brasil.
Uma maré de gente mobilizada contra o corte de 30% das verbas para a educação superior – e outros cortes que também afetam a educação de nível básico, programas de bolsas e apoio à pesquisa científica, que teve como resultado um tsunami que alcançou o presidente Jair Bolsonaro.
Na semana anterior, em entrevista aos meios que cobrem Brasília, o mandatário afirmou que uma onda gigante poderia afetar seu governo esta semana, mas que sua equipe estava preparada. Talvez fez as contas baseado num equilíbrio político similar ao de outubro de 2018, quando ganhou as eleições superando, em mais de 10 pontos percentuais, a Fernando Haddad e ao PT – partido que, mesmo em queda livre, se mantém como o mais forte da esquerda brasileira, ao menos eleitoralmente. Erro grosseiro! Sete meses são como meia década nestes tempos de redes digitais, algo que ele deveria saber, considerando o excelente uso dessas plataformas por parte de sua equipe, o que vimos não só durante a campanha como até mesmo na construção de sua imagem presidencial.
É curioso que mesmo nessa dinâmica em que as redes sociais nos impõem mudanças tão frequentes, a frase de Welles continue tendo sentido. Mesmo que proponhamos uma mudança como a de agregar à frase original um agá maiúsculo, para se referir à História, essa ciência perigosa e inimiga preferencial dos ataques de Bolsonaro à Educação. Essa História relatada através de documento, da arte, dos feitos e consequências nos propõe contestações e nos faz mergulhar nos seus sentidos e legados. Está claro que, enquanto houver gente no mundo, não haverá fim da História (sorry, Fukuyama!), mas o mais interessante é o que acontece quando as pessoas comuns se apropriam de sua História – coletiva ou individual – e tentam, através de sua vivência, ser os porta-vozes de uma nova realidade.
Darcy Ribeiro, importante antropólogo e político brasileiro, tem uma frase bem conhecida: “a crise da educação não é uma crise, é um projeto”. Fundador da Universidade de Brasília, Darcy sabia muito bem do que falava, e nos recorda que destruir bom projetos educativos – em seus diferentes níveis – não é exatamente uma novidade em nosso país. Muito menos surpreende a ideia de acossar professores por suas ideias, ou deixar de investir em determinadas áreas de conhecimento com a desculpa de que não são importantes para a economia, para o mercado. A grande questão do bolsonarismo e seu neoliberalismo de terra arrasada é defender – sem se preocupar com recursos retóricos para abrandar as ações de destruição de direitos – um modelo pelo qual apenas uma elite intelectual pode chegar à universidade, reforçado por um discurso de que ampliar esse acesso foi desastre: “muito dinheiro foi gasto que não trouxe resultados”, quando o problema do Brasil são os investimentos que faltam, asfixiando a educação, a saúde e a pesquisa científica.
Nesta quarta-feira, no entanto, a História não foi dos que pensam numa tal “elite intelectual”. A História foi das centenas de estudantes que foram às ruas contra esse projeto de devolver a Educação a um passado visto como ideal, excludente e elitista. Centenas de milhares de histórias de pessoas protagonistas e beneficiados por políticas públicas não querem deixar o seu lugar conquistado. O estudante negro que ingressou em uma faculdade pública graças à política de cotas raciais, que significou que muita gente das favelas e das zonas mais vulneráveis pudessem cursar uma universidade e mudar o destino de suas famílias. As mulheres que se uniram para defender mais espaço nos cursos, um tratamento mais justo e sem abusos por parte de colegas e professores. Histórias que não sensibilizam a extrema direita. Tanto que o sucesso das manifestações já provocou uma nova convocação feita pela UNE, para outra paralisação no dia 30 de maio, e também já há rumores de uma greve geral em junho.
Enquanto isso, o presidente Bolsonaro chama os manifestantes de “idiotas úteis”, e o ministro da educação, Abraham Weintraub, insiste em dizer que os cortes são necessários e que políticas públicas se fazem através de planilhas de excel, e não através de manifestações políticas. O problema do bolsonarismo é que sequer possui argumentos razoáveis e racionais para defender suas ideias e projeto de país – se é que eles existem. Apostam somente na desqualificação de quem os contesta. Isso acontece desde a campanha eleitoral, quando se empenhou em acusar Haddad de “querer ensinar o homosexualismo (sic) às crianças”. Nos últimos dias, os grupos bolsonaristas do whatsapp foram invadidos por memes que visavam desprestigiar o ensino superior público como um todo, dizendo que os estudantes só fazem balbúrdia, e transformaram as universidades em um antro de drogas e maratonas sexuais – o que gera uma certa revolta e frustração aos estudantes reais, além de boas piadas sobre não terem sido convidados para as tais maratonas sexuais presentes na fantasia dessa extrema direita neurótica e mal resolvida sexualmente.
A façanha de Bolsonaro foi fazer da irracionalidade a matriz de políticas públicas aplicadas a um país de imensidão do Brasil. A política se torna burlesca, afetando toda uma sociedade de maneira negativa, até mesmo os fanáticos que acreditaram na tal “nova era” que o bolsonarismo traria. Neste contexto, a Educação se torna refém do ministro Weintraub e do seu colega da Economia, Paulo Guedes, produto de uma Universidade do Chile dominada pelo pensamento único ultra neoliberal dos tempos Pinochet.
Nesta quarta-feira foi a primeira grande prova de Bolsonaro como presidente, depois de cinco meses de mandato, e assim recordamos novamente a Orson Welles. Entre tantos gritos diferentes que brotam da consciência dos diretos conquistados e de um futuro individual e coletivo a construir, a História segue seu curso. A história não acabou com vitória bolsonarista de 2018, e agora ela bateu de frente com este maio de 2019. No fim das contas, fica a pergunta sobre como este momento será contado ás gerações futuras. O final feliz deveria ser o das pessoas que se dispuseram a disputar a História nas ruas, sabendo que a luta, assim como a História, jamais vai acabar. E essa luta é para que o futuro seja algo melhor que a mediocridade elitista de um bolsonarismo neoliberal vazio e cruel.
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Manifestantes em São Luís contra os cortes nas universidades.