As eleições de janeiro deste ano em Taiwan foram praticamente ignoradas, mas isso não durou muito, uma vez que a questão voltou à ordem do dia: primeiro, tivemos o discurso de posse agressivo do presidente eleito Lai Ching-te e, por conseguinte, a resposta chinesa, na forma de um novo grande exercício militar em torno do conjunto de arquipélagos que constituem a “República da China” (ROC) – e recebe o nome coletivo da maior de suas ilhas, Taiwan.
Separadas por um estreito que varia entre meros 130 a 180 quilômetros de largura, o continente e a ilha de Taiwan travam um dos derradeiros embates restantes da Guerra Fria. Taiwan não é, nem se reconhece como um país, mas sim como continuidade da República da China (ROC), derrotada pelos comunistas no continente em 1949 – e que inclui a grande ilha e mais alguns arquipélagos como Penghu, Kinmen e Lienchiang.
O Partido Democrático Progressista (PDP), que elegeu novamente o presidente, perdeu, no entanto, a maioria no parlamento. Defensor da secessão taiwanesa da China e arquirrival do Kuomintang (KMT), que governou a ROC ditatorialmente ao longo de décadas, o PDP representa os anseios de independência de Taiwan em relação à China, mas também é o representante das pautas liberais – e de uma sociedade cada vez mais fragmentada.
No ato estridente do novo presidente, sem maioria parlamentar, encontramos ecos também da disputa internacional entre a República Popular da China (RPC) e Estados Unidos – com Washington, embora reconhecendo a RPC como a única e verdadeira China, apoiando cada vez mais Taiwan, em uma escalada de provocações que não parece conhecer limites, fazendo soar os alarmes de uma comunidade internacional já assombrada por outras crises em curso.
O que é Taiwan?
![](https://controle.operamundi.uol.com.br/wp-content/uploads/2024/06/taiwan.jpeg)
(Foto: Paul Chang / Flickr)
Durante décadas, o mundo reconheceu Taiwan, isto é, a ROC, e não a RPC como a “verdadeira China”, até que em 1971 passou a reconhecer o óbvio, e o continente, governado pelos comunistas, foi admitido nas Nações Unidas. Nem por isso o Ocidente abandonou seus aliados em Taiwan, gerando uma situação paradoxal que favoreceu o governo sediado em Taipé, o qual continuou a receber proteção e influxos de capital para seu desenvolvimento.
Taiwan, recordemos, passou ao domínio chinês em 1683, o que é pouco para a história milenar do país asiático. Antes, ganhou importância durante as Grandes Navegações, quando os portugueses nomearam a ilha como “Formosa”. Veio um breve domínio espanhol e, então, a chegada dos holandeses no século XVII – como ocorreu no Brasil –, os quais, depois de décadas, deram lugar às tropas Ming que, ironicamente, fugiam da queda de sua dinastia no continente.
Os chineses já conheciam Taiwan desde os fins da Dinastia Han, mas a confirmação disso está no relato de uma expedição para lá em 230 d.C., no período dos Três Reinos, quando a ilha foi chamada de Yizhou – depois, no século VII, possivelmente todo o arco de ilhas passa a ser chamado de Liuqiu [流求] que é apenas a pronúncia chinesa do que os japoneses chamam de Ryukyu, ou seja, todas as ilhas que são hoje Okinawa e Taiwan eram uma só coisa.
Apesar de várias missões e expedições, a China sempre se voltou para a terra firme e o comércio que se dirigia à Ásia Central e ao Oriente Médio. A mudança repentina operada pela Dinastia Qing está ligada a questões que variam de necessidades estratégicas de defesa, uma vez que o continente precisava estar protegido dos navegadores europeus – o que expressa a visão de mundo militarista, talvez não sem razão, dos manchus que comandaram a última dinastia.
“Tai-wan” significa, literalmente, “baía da torre” [台灣], muito embora seja só uma transcrição fonética do povo originário taivoan, o qual pertence à vasta família etnolinguística austronésia, presente no Sudeste Asiático, nas ilhas que formam hoje Indonésia, Malásia, Filipinas, Polinésia e adjacências. Os arquipélagos possuem no total uma população um pouco maior do que Minas Gerais, mas em um território um pouco menor do que o Rio de Janeiro.
Os taivoan, contudo, são apenas um grupo localmente reconhecido, ao contrário dos atuais 16 grupos indígenas nacionalmente reconhecidos pela ROC – constituindo 2,5% de sua população total. Os chineses étnicos que migraram do continente ao longo do tempo são a maioria da população, mas vêm basicamente de dois sub-grupos específicos de chineses étnicos, os hoklo – uma subdivisão dos min do sul – vindos de Fujian, e os hakka do Cantão.
O Império do Japão, em sua expansão, conquistou o reino de Ryukyu em 1879 e, em seguida, Taiwan em 1895, no que era parte de um processo lento, gradual e paciente de avançar sobre o continente chinês – o que envolveu, também, a conquista da Coreia em 1910 e o avanço em etapas sobre o território chinês a partir dos anos 1930. Taiwan foi um importante entreposto estratégico também para o domínio japonês das ilhas do indo-pacífico.
Com a derrota japonesa, Taiwan volta para a ROC, que estava, contudo, em vias de ser derrotada pelos comunistas. O recomeço da Guerra Civil Chinesa levou a uma vitória relativamente rápida dos vermelhos, mas Chiang Kai-shek, líder do Kuomitang (KMT), se refugiou na ilha, levando cerca de um milhão de chineses do continente para elas, entre civis e militares, na chamada Grande Retirada [Dà Chètuì – 大撤退]
Esse processo de retirada para as ilhas levou à imposição de uma versão local do mandarim, a língua da nação [guóyǔ – 國語], sobre os dialetos hokkien e hakka falados pelos chineses locais. Assim como o mandarim do continente, que é uma língua nacional e franca, estruturada a partir do falar do Norte da China, o guoyu entra em contraste com os falares sulistas, que, no entanto, são tratados como língua nacional pelas elites locais – sobretudo no caso do hokkien.
A Grande Retirada produziu uma nova elite local, o que gerará uma divisão que alcança os nossos dias. Embora durante muito tempo amortecida pelo anticomunismo em comum – e pelo grande crescimento econômico da ROC no século XX – hoje essas questões vêm à tona, seja pela desaceleração econômica ou pelas diferentes percepções sobre o que deverá ser o status dos arquipélagos em um futuro próximo.
Taiwan, da Guerra Fria à província rebelde na globalização tardia
Com a República Popular da China proclamada em 1949, a Guerra Civil encerrada em 1950, a perda do controle de Taiwan pelas forças nacionalistas só não ocorreu por dois fatores: o primeiro, a eclosão da Guerra da Coreia, em 1950, demovendo Pequim de enviar imediatamente efetivos para recuperar Taiwan e, por fim, o apoio Ocidental, inclusive com ameaças americanas de bombardear com armas nucleares o continente.
Chiang Kai-shek jamais praticou políticas desenvolvimentistas no continente, onde foi senhor absoluto de 1928 a 1949, após a aliança com os senhores da guerra e senhores da terra que antes combatia, virando-se assim contra os comunistas. Uma vez restrito a Taiwan, foi obrigado a fazer diferente por conveniências políticas, empreitada para a qual teve o apoio firme do Ocidente liderado pelos Estados Unidos.
E esqueça comparações com a China continental: Taiwan viveu, rigorosamente, sob Lei Marcial entre 1949 e 1987, a segunda mais longa da história humana. Tudo isso foi apoiado pelo Ocidente, a despeito da sua retórica atual de “democracia [liberal]” para a Ásia. Embora muitas das elites liberais dos arquipélagos usem eleitoralmente a crítica à ditadura taiwanesa, elas são aliadas dos mesmos atores internacionais que apoiaram a Lei Marcial.
O velho KMT se tornou nessa ordem o partido de direita conservadora, com as pautas modernas e democratizantes encontrando repositório no PDP, o qual, por outro lado, sempre tratou de os manter longe de qualquer coisa que cheirasse a socialismo – mesmo em uma versão social-democrata – assumindo, ainda, uma defesa do nacionalismo local versus a ideia de Taiwan como parte de uma grande China – o que parece agradar aos Estados Unidos agora.
As décadas de ditadura do KMT alimentavam a ilusão de “uma volta ao continente”. Com a decepção da ROC ter deixado de ser reconhecida como a “verdadeira China”, uma nova ilusão tomou lugar: supostamente, após a abertura da China continental, o socialismo colapsaria, destinando o comando de uma China unificada à elite de Taipei – essa profecia, como sabemos, também não se realizou.
O colapso da ditadura, e a instauração de uma democracia representativa nos anos 1990, criou uma rivalidade entre os blocos liderados pelo KMT e pelo PDP, o que não é uma disputa ideológica sobre o mesmo projeto, mas uma luta por dois projetos diferentes para os arquipélagos – o PDP não quer disputar o futuro da China, mas se separar dela, assentado em uma afirmação nacional dos hoklo como estrutura de uma identidade nacional.
A divisão do voto em Taiwan é bastante geográfica, sobretudo com o aumento da polarização entre os partidos. A demografia do voto de 2024 lembra muito a demografia das línguas – onde os condados do oeste, voltados para o estreito e que preferem o hokkien ao mandarim local, concentram a base eleitoral do PDP e apoiam ou toleram as demandas de secessão, enquanto os moradores das montanhas do leste são a base do eleitorado “unionista” do KMT.
Esse detalhe liga outra luz vermelha em Pequim, pois a China funciona, há milênios, à base de uma língua franca que, por sua vez, coexiste em um patamar hierarquicamente superior com uma multiplicidade de falares regionais – que nutrem diferenças entre si que entenderíamos como “outro idioma”, ainda que do mesmo grupo, mas não é assim que funciona na China.
O KMT, adversário histórico dos comunistas chineses, teve sua posição histórica virada ao avesso: o que era simplesmente uma posição de contrariedade à linha comunista passou a ter um adversário também dentro da ilha; a partir daí, o KMT teve de assumir uma postura pró-unificação, o que paradoxalmente o aproxima do Partido Comunista no continente. Identificado com um nacionalismo conservador e “antigo”, no entanto, a legenda perdeu terreno.
No entanto, um terceiro fator de complexidade surgiu em 2019, com o Partido do Povo de Taiwan (PPT), de centro-esquerda, que é cético em relação à independência – o que criou uma contradição com o KMT no programa para o plano interno e, ainda, uma contradição com o PDP no plano externo, impondo uma maioria liberal no parlamento, embora não secessionista. Seu candidato e líder, Ko Wen-je, ficou em terceiro lugar em janeiro.
Isso explica o porquê de uma lei que diminui os poderes do presidente ter sido aprovada no parlamento, gerando uma boa dose de protestos a favor e contra nas ilhas: Lai não tem maioria parlamentar e é o presidente mais fraco em muitos anos. Isso também nos ajuda a entender seu discurso de posse, que assume expressamente o apoio à independência, tudo para se mostrar forte e angariar apoio fora da ilha para transformar isso em dividendos internos.
É a economia…
Apesar disso, os votos no PDP não podem ser interpretados apenas como expressão eleitoral da demanda por independência. Segundo a Universidade Chengchi de Taipei, que acompanha a popularidade do secessionismo há anos, o apoio à independência nunca foi dominante na opinião pública taiwanesa – e depois de ter atingido seu pico em 2020, com 38%, desde os fins de 2021 o secessionismo entrou em tendência declinante, chegando aos 31% atuais.
Se isso nos ajuda a entender o esvaziamento dos votos do PDP em 2024, por outro lado também aponta para um outro elemento curioso: as vitórias eleitorais do PDP mais serviram para alavancar a causa independentista do que surfar em uma onda que, na verdade, nunca existiu de forma relevante. A fadiga e mágoas da longa ditadura do KMT, e sua posterior conversão a partido ultraconservador, tornaram o PDP a única alternativa para a modernidade.
Atualmente, 60% dos taiwaneses desejam manter o status quo. Isso pode ser entendido como expressão de descontentamento pela desaceleração econômica, que se deu sob o governo independentista de Tsai Ing-wen, correligionária de Lai – que era, contudo, mais comedida que ele nos seus gestos e falas, embora tenha cruzado sucessivamente linhas muito caras a Pequim na sua política de Uma só China.
A indústria de chips taiwanesa está no meio da guerra comercial contra a China, e é a joia da coroa da economia local, muito embora o próprio Biden tenha, exitosamente, lutado para que os nanochips sejam fabricados nos Estados Unidos – se a Casa Branca quiser fazer um movimento de sacrifício de peão, manobrando Taipei para uma guerra contra Pequim, ela precisa não ser atingida com o corte de suprimentos de um item central para seu setor militar.
O fato é que a enorme diferença que havia entre Taiwan e o continente encurtou bastante. As grandes cidades chinesas – cujas populações, em geral, equivalem a toda ROC – mesmo que ainda estejam atrás nas avaliações per capita, são muito mais inovadoras e prósperas. Com o tempo a seu favor, Pequim reforça sua autoridade, mas sabe que, embora exercícios militares satisfaçam suas massas, as sanções econômicas são o melhor caminho para emparedar Taipei.
O futuro de Taiwan, que cresce pouco, envelhece rápido e vê sua população diminuir é uma incógnita, que varia da tendência à reconciliação com o continente até a uma guerra suicida, esta última também causada pela geopolítica caótica dos Estados Unidos – mas não é apenas isso. Agora não se trata somente de uma equação externa que precise ser equilibrada, uma vez que há vários atores internos em movimento.
Portanto, não se pode perder de vista as nuances internas da política da ROC, as quais tornam o secessionismo de Taiwan, antes de tudo, uma expressão de suas próprias divisões internas, as quais foram causadas pela justaposição de sucessivas tragédias históricas. Pequim sabe que tem de oferecer uma alternativa concreta para essa necessária reconciliação histórica, embora não possa correr o risco de perder Taiwan – exatamente como nos fins do século XIX.