Nos últimos dias tem repercutido a declaração do secretário da Defesa dos EUA, Lloyd Austin, segundo o qual a derrota da Ucrânia poderia levar a um conflito direto entre OTAN e Rússia. Além dele, também o presidente da França abordou uma possível escalada da guerra por meio da entrada direta da OTAN em um cenário de vitória da Rússia na guerra que trava contra a Ucrânia.
O fato, negado pelas autoridades dos países-membros da OTAN, é que o conflito entre a Federação Russa e a Ucrânia já é, desde o início – que pode ser localizado no ano de 2014, com a interferência direta das diplomacias dos EUA e da União Europeia no país –, uma guerra que envolve a OTAN. Fundamentalmente, em obediência aos interesses do Departamento de Estado dos EUA na região, para quem o isolamento e o cerco à Rússia constituem linha central da estratégia de consolidação do poder dos EUA no continente europeu.
Em artigo publicado há cerca de vinte anos, Samir Amin distinguia o imperialismo contemporâneo daquele que antecedeu as duas guerras mundiais. Conforme o estudioso, antes das grandes guerras havia um “imperialismo coletivo”, cujos atores eram os Estados europeus em expansão neocolonial. Após 1945, afirmou-se a supremacia dos EUA no cenário mundial, apoiada fundamentalmente nas vantagens econômicas e militares da potência americana. Os EUA, por meio do Plano Marshall e da progressiva ampliação da preponderância do dólar na economia mundial, passaram a exercer grande influência política sobre a Europa e também sobre o Japão, firmando uma espécie de “tríade”, ou bloco, cujo inimigo central era o conjunto de países socialistas sob a liderança da URSS.
Desde a Guerra Fria, a conformação de um bloco militar que funcionasse como extensão dos objetivos militares dos EUA para fora do seu território – especialmente para a Europa – foi central à afirmação do poder dos EUA. Conforme Amin, a “iniciativa de estender a Doutrina Monroe a todo o planeta (…) é o projeto que a classe dirigente dos Estados Unidos concebe depois de 1945 (…). O projeto atribuiu sempre um papel decisivo à sua dimensão militar – estratégia militar global, dividindo o planeta em regiões e delegando a responsabilidade do controle de cada uma delas a um US Military Command (Comando Militar dos EUA)”.
Dentro dessa estratégia geral, que precede a queda da URSS, inseria-se a busca pelo domínio do Oriente Médio, com o duplo objetivo de circunscrever a URSS a uma pequena região do mundo – assim como a China – e de “também dispor dos meios que fariam de Washington o dono absoluto de todas as regiões do planeta. Dito de outro modo, estender a todo o planeta a Doutrina Monroe, que efetivamente outorgava aos Estados Unidos o direito exclusivo sobre o Novo Mundo de acordo com o que eles definiam como seus interesses nacionais”.
Com o fim da URSS, a aliança atlântica não se desfez. Ao contrário: ampliou-se para leste, rumo às fronteiras da principal herdeira do poderio bélico socialista, a Federação Russa. Ao longo dos anos 1990, com o fortalecimento da União Europeia, debates acerca de um exército europeu, independente da OTAN, surgiram esporadicamente no velho continente sem que, contudo, prosperassem – muito em razão da posição incondicionalmente pró-EUA da Grã-Bretanha, somada à derrota dos setores “gaullistas” franceses (Charles De Gaulle tinha uma visão crítica do processo de adesão da Europa à política atlântica dos EUA) e pelas dificuldades encontradas internamente na política alemã. Assim, se por um lado é fato notório que as vantagens econômicas dos EUA vêm decaindo há quase quatro décadas – processo acelerado nos últimos anos com a progressiva perda de centralidade do dólar no comércio mundial (processo, porém, ainda incompleto) – , também é verdade que o poder dos EUA no mundo hoje é centrado, fundamentalmente, em sua ampla vantagem militar. Com poderio bélico individual superior à capacidade militar de todo o mundo e, ainda, com a possibilidade de expandir sua zona de intervenção para o continente europeu por força dos tratados constitutivos da OTAN, os EUA são, de longe, a única superpotência global em termos militares. Esta é a principal característica do imperialismo dos EUA, embora não se possa, por certo, desconsiderar a importância do dólar e da influência cultural estadunidense no planeta.
Conforme os documentos da própria OTAN, a aliança é financiada pelas contribuições de seus sócios, sendo que os EUA são seu principal financiador. Todos os membros contribuem para o financiamento da aliança, com valores calculados com base em seu Produto Nacional Bruto. No entanto, a disparidade de poder é imensa. Segundo a própria OTAN, “a riqueza combinada dos Aliados que não são os EUA, medida em PIB, é quase igual à dos Estados Unidos”, ao mesmo tempo em que os países gastam, somados, menos de metade do que os Estados Unidos repassam para seu orçamento (individual) de defesa. No momento, a OTAN busca ampliar suas capacidades militares, tendo em vista o atual conflito que envolve a Aliança e a Federação Russa, principal alvo dos EUA na região. A confirmação desta extrema preocupação revela-se pelo resultado do encontro realizado em Vilnius em 2023, no qual os líderes da OTAN “acordaram um novo Compromisso de Investimento na Defesa, assumindo um compromisso duradouro de investir pelo menos 2% do PIB anualmente na defesa. Afirmaram também que, em muitos casos, serão necessárias despesas superiores a 2% do PIB para remediar as deficiências existentes e cumprir os requisitos em todos os domínios decorrentes de uma ordem de segurança mais contestada. O novo Compromisso de Investimento em Defesa também apela aos Aliados para que cumpram a diretriz anual de 20% de despesas de defesa em novos equipamentos importantes, incluindo investigação e desenvolvimento”.
O esforço de investimento em equipamentos de guerra é revelador da centralidade que a OTAN tem para a manutenção do poder dos EUA no cenário global. Pouco a pouco essas questões vão se tornando mais claras, tornando difícil a manutenção da versão de que a OTAN não tem participação direta na guerra em curso. Ao contrário: a OTAN, como parte fundamental da estratégia militar dos EUA – sendo este o ponto central da garantia de sua posição como superpotência mundial – é o elemento gerador da instabilidade regional no continente europeu. A manutenção dos conflitos – e portanto do cerco à Rússia, maior potência regional – é central à continuidade das relações de subserviência estabelecidas entre a Europa do pós-guerra e os EUA. Uma ruptura desta aliança, provocada por algum dos Estados europeus, significaria muito mais do que uma mera suspensão de um acordo militar. Seria uma ameaça à própria base do poder dos EUA no mundo.
(*) Rita Coitinho é socióloga e doutora em Geografia, autora do livro “Entre Duas Américas – EUA ou América Latina?”, especialista em assuntos da integração latino-americana.