É o corpo das mulheres o nervo descoberto tocado pela proibição do burquíni nas praias francesas. Nu ou coberto, quem tem a autoridade de decidir? Li incrédula a declaração do primeiro-ministro francês, Manuel Valls: “[O burquíni] não é compatível com os valores da França e da República”. Porque não se trata de uma moda, disse ele, mas sim da afirmação de um projeto baseado na submissão das mulheres. Acho surpreendente que seja tão difícil perceber que uma decisão de quem representa a República francesa não é tão diferente daquela de quem impõe por lei o hijab e a cobertura total dos corpos das mulheres.
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Trata-se de um poder que decide como deve ser e como deve se apresentar o corpo de uma mulher. E se Paolo Flores, filósofo italiano que se declara “radicalmente ateu”, é coerente com suas posições ao escrever que “a proibição do burquíni é uma proteção justa dos princípios do secularismo”, me espanta que alguém que se declara feminista, como a ativista e escritora italiana Lorella Zanardo, considere tal proibição oportuna e necessária para as mulheres.
Ninguém tem o direito de dizer a uma mulher como se vestir ou se despir – não é isso que sempre dissemos, nós, as feministas? As normas de vestuário e as normas do corpo são armadilhas que aprisionam as mulheres. A grande escritora e socióloga marroquina Fatema Mernissi, em seu livro “O harém e o Ocidente” [sem edição brasileira], já não havia explicado isso bem ao descrever a tortura do manequim 42 (que desde então já diminuiu alguns números na exigência sobre os corpos das mulheres)? “Foi em uma loja de departamentos norte-americana”, escreve ela, “durante uma tentativa frustrada de comprar uma simples saia, que ouvi a vendedora dizer que meu quadril era grande demais para o tamanho 42. Tive então a penosa oportunidade de experimentar como a imagem de beleza do Ocidente pode ferir fisicamente uma mulher e a humilhar tanto quanto o hijab imposto pelo Estado em regimes extremistas como no Irã, no Afeganistão ou na Arábia Saudita.” Uma afirmação forte e provocadora que me parece o único quadro conceitual que permita raciocinar com a mente aberta e lúcida sobre o intricado nó que o burquíni e as mulheres que o usam nos obrigam a encarar.
Reprodução / Facebook Ahiida Burqini Swimwear
Mulheres de burquíni na Austrália; traje de banho foi proibido em 12 cidades da França, entre elas Cannes e Nice
Como se trata de carne viva, não é um jogo de palavras e provoca choques e reações. Quais, exatamente? O que está em jogo? A liberdade de quem? Que se trata da liberdade das mulheres muçulmanas, como afirmam os apoiadores da proibição do burquíni, eu não tenho dúvidas: é melhor que elas entrem na água, que nadem, que façam esportes, como vimos nas Olimpíadas recém-encerradas, de uma maneira compatível aos princípios e ao mundo delas, do que estejam paradas, fechadas, prisioneiras. Movimentar-se é adquirir força, determinação, experimentar prazeres e satisfações. A liberdade das mulheres é uma construção, uma transformação. É melhor que elas possam ir à escola do que sejam constrangidas a ficar em casa porque a lei proíbe o hijab que a família e a religião impõem, como acontece na França.
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Esta teria sido a motivação da australiana de origem libanesa Aheda Zanetti, que em 2003 queria algo que permitisse a sua sobrinha jogar netball – esporte popular na Austrália – e para isso idealizou o burquíni, como ela o nomeou. A vestimenta foi colocada à venda em 2007 e até hoje foram vendidas cerca de 700 mil peças em todo o mundo, a preços que, no site da estilista, variam entre 100 e 450 reais. Concessão, menor dano? Me parece uma alternativa praticável, já que o proibicionismo impede algumas mulheres de gozar seu direito e sua liberdade de estar na praia e se banhar.
E se a liberdade em jogo for a dos homens, de ter à disposição nas praias corpos seminus com os quais se deliciar sem obstáculos, como acontece no esporte, com câmeras de TV que se concentram – inutilmente, em relação à ação atlética – em coxas, bundas, púbis? Ou, ainda, está em jogo a liberdade das mulheres de se mostrar ou não ao olhar masculino? E a liberdade das mulheres de ser como desejarem ser, além dos olhares e dos guardiões que reivindicam o direito de falar em nome delas? Qual norma está livre do olhar dominante? Difícil encontrá-la no mundo livre-liberal do mercado único europeu. E quanto ao secularismo, que secularismo é esse que se transforma em fundamentalismo?
Não se trata de confundir liberdade e submissão. Conhecemos as normas, as leis, os modelos culturais que constrangem as mulheres a vidas sem respiro e sem luz. Devemos combatê-los. O primeiro passo é escutar as mulheres, aquelas que escolhem se vestir de uma maneira que tanto nos incomoda e perturba. Nada me parece mais liberador do que se olhar de perto, umas e outras – outros também, talvez –, sem molduras, na areia da praia. Eu te olho e te vejo, você me olha e me vê. Nós nos olhamos e nos vemos. São as proibições que alargam distâncias e criam barreiras e abismos. Por que impedir que o olhar recíproco conduza ao pensamento livre e às escolhas livres?
Publicado originalmente no site do jornal italiano il manifesto. Tradução: Carolina de Assis