Apesar de os temas de política externa não ocuparem mais do que alguns minutos no Discurso da União, chamou a atenção o fato de o presidente dos EUA, Joe Biden, invocar em sua fala, um dos mais significativos discursos da história dos EUA, quando o presidente Franklin Roosevelt (janeiro de 1941) se dirigiu à nação alertando sobre a ameaça que representava o nazismo e a necessidade de reagir para defender o “mundo livre”.
Os EUA não estão na iminência de entrar em guerra, mas estão bastante envolvidos nos dois conflitos armados, na Ucrânia e Gaza, que atraem a atenção do mundo inteiro e que têm sido destino de boa parte dos recursos destinados às questões internacionais.
Sem nenhuma surpresa, Biden fez duras críticas a Putin e reiterou seu apoio à Ucrânia em sua guerra com a Rússia, e fez o mesmo em relação a Israel, ao mesmo tempo em que pediu que o país permitisse a entrada de mais ajuda em Gaza e “garantisse que os trabalhadores humanitários não fossem atingidos pelo fogo cruzado”.
Definitivamente, não há nada na história das relações internacionais que se assemelhe às relações entre EUA e Israel, que, na falta de uma melhor definição, descrevemos como “relações especiais”. A questão Israel-Palestina é abordada como se fosse uma questão interna dos EUA e, nesse sentido, não se assemelha a nenhuma outra questão de política externa. Como explicar que o país que transfere bilhões de dólares em armas, munições e tecnologia a Israel, e que o apoia há mais de meio século em toda e qualquer ação, não tenha permissão para entregar ajuda humanitária aos palestinos? Em 2016, o ex-presidente dos EUA, Barack Obama, apesar de ter confrontado Netanyahu, assinou um acordo que autorizava a transferência de 38 bilhões de dólares ao longo de 10 anos para Israel em ajuda militar. Em 2023, o financiamento militar dos EUA para Israel ultrapassou 3,8 bilhões de dólares. Como explicar que o elo mais poderoso, os EUA, se dobre à vontade daquele é sustentado por ele política e militarmente?
Na ausência de uma ação política mais concreta, o máximo que Biden pode fazer é mostrar mais empatia pelos palestinos e dizer que deverá aliviar seu sofrimento com projetos de ajuda humanitária, querendo com isso agradar os setores mais progressistas do Partido Democrata. Mas suas falas soam cada vez mais cínicas, hipócritas e patéticas ao fazer vagos apelos de bom senso ao governo de Israel. Mesmo quando sinaliza tentativa de promover ajuda humanitária aos palestinos em Gaza, ela se mostra inadequada. Após o anúncio de que iria construir um cais em Gaza para facilitar a entrega de ajuda, Biden esclareceu que o governo israelense deverá manter a segurança do local. Em última instância esse projeto poderá até ser conveniente para Israel fazer suas ações militares em Gaza.
Além das três principais remessas militares que se tornaram públicas, desde o início das ações militares no dia 7 de Outubro, houve mais de cem entregas de material militar a Israel que escaparam à vigilância do Congresso porque foram feitas ao abrigo de uma autorização de emergência e de “pequena escala”. Tratam-se de munições de precisão, bombas de pequeno diâmetro, projéteis de tanques e outros instrumentos letais que estão causando a morte de milhares de palestinos. O que revela o ativismo do poder executivo do governo Biden em prover Israel de forma ininterrupta.
Além das ações militares, tem chamado a atenção da opinião pública internacional o uso de alimentos como arma de guerra, tal como anunciado pelo ministro da Defesa de Israel no dia 7 de outubro, quando disse que os habitantes de Gaza deveriam ser tratados como “animais”. Portanto, a escala de horror infligida a civis nas ações em Gaza e o papel central que os EUA desempenham em seu apoio a Israel elevaram o perfil da questão na política americana.
Apesar das evidências, que revelam um genocidio em marcha com o total comprometimento dos EUA, as pesquisas revelam que há diferenças significativas na maneira como a sociedade discute os dois conflitos, Ucrânia e Gaza, com quase o triplo de estadunidenses revelando que sentem a necessidade de ser extremamente cuidadosos ao discutir a questão israelense-palestina em relação àqueles que dizem o mesmo sobre a guerra Rússia-Ucrânia. Até mesmo uma grande maioria dos acadêmicos especialistas em Oriente Médio tende a autocensurar-se no que se refere às críticas a Israel.
Tudo isso revela o poder hegemônico das instituições políticas, midiáticas e culturais em cercear o debate crítico a respeito do apoio incondicional às ações de Israel que vai muito além do poderoso lobby israelense.
Mais da metade dos estadunidenses são a favor de suspender o envio de armas para Israel até que o país interrompa o ataque a Gaza. Além disso, de uma forma geral, a imagem positiva de Israel caiu de 68%, ano passado, para 58%. A menor avaliação favorável a Israel em mais de duas décadas. No que se refere aos jovens adultos americanos, o declínio chama bastante a atenção, caindo de 64% de favoráveis entre os jovens de 18 a 34 anos em 2023 para 38%.
Em recente entrevista à MSNBC, Biden disse que a provável a invasão de Rafah, no sul de Gaza, por parte de Israel, seria a “linha vermelha” para o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu. Mas, logo a seguir esclareceu que nunca deixaria de apoiar Israel.
Não há nada de novo em se perceber contradições na política externa dos EUA, mas, nesse caso em específico, se trata de genocídio, cujas cenas são mostradas diariamente para todo o mundo e, independentemente da repercussão eleitoral, as divisões internas no Partido Democrata serão significativas. Além disso, os EUA passaram a “linha vermelha” e definitivamente já não têm as mínimas condições de legitimidade para articular qualquer tipo de plano de paz na região, mesmo entre os seus aliados árabes.
Mas, é preciso reconhecer também que os EUA não são prejudicados por ser um mero executor das vontades de Israel. Essa aliança especial permite aos EUA se manter sempre presente no Oriente Médio com um aliado extremamente fiel, afinal de contas o massacre em curso em Gaza é feito com armas e inteligência norte-americanas, pelas mãos de Israel.
(*) Reginaldo Nasser é professor livre-docente na área de Relações Internacionais da PUC-SP, no Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp e PUC-SP) e autor do livro “A luta contra o terrorismo: os EUA e os amigos Talibãs”.