Esqueçam a Constituição Federal de 1988 e seu tão celebrado arcabouço de direitos sociais, isto é, a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, que a princípio seriam assegurados pelo Estado por meio dos bens e serviços públicos, gratuitos e fundamentalmente de qualidade. A obsessão dos liberais com a privatização abrange hoje todas as esferas, não respeita as necessidades do povo e sua cultura, e para além de transformar bens públicos em uma fonte de lucro para um pequeno grupo de ricos, também destrói os pilares da democracia.
A proposta legislativa nº3/22, conhecida como PEC das Praias, foi aprovada pela Câmara em 2022 e passou por audiência pública no Senado no último dia 27, mas ainda não foi analisada em comissões e no plenário. Se aprovada, a emenda constitucional permitirá a transferência da propriedade de terrenos do litoral, hoje sob o domínio da União (geridos pela Secretaria do Patrimônio da União [SPU], do Ministério de Gestão e Inovação em Serviços Públicos), para Estados, municípios e proprietários privados. A proposta é de autoria do ex-deputado federal Arnaldo Jordy (Cidadania-PA) e tem parecer favorável do relator, o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ). Os terrenos de marinha são as áreas situadas na costa marítima em uma faixa de 33 metros a partir do mar indo continente adentro.
A Lei Federal nº 7.661/1988, que instituiu o Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro, determina que “as praias são bens públicos de uso comum do povo, sendo assegurado, sempre, livre e franco acesso a elas e ao mar, em qualquer direção e sentido”. A PEC não prevê alterações em tal lei, mas certamente a aprovação do texto poderia levar ao fechamento dos acessos às áreas de areia mediante a pressão dos grandes empreendimentos, como hotéis e resorts, para explorar esses terrenos, isto é, privatizar o acesso às praias. Ainda, conforme o debate ocorrido na audiência pública de 27/05, é de suma importância para a soberania nacional e para o equilíbrio ambiental o domínio da União sobre a faixa marítima, uma vez que a PEC, ao favorecer a ocupação desordenada, torna esses terrenos mais vulneráveis a eventos climáticos extremos, pois além do nível do mar subindo nos últimos anos, esses espaços, que normalmente têm manguezais, restingas e falésias, são áreas de preservação permanentes.
Nesta mesma toada, há o Projeto de Lei 345/2024, de autoria do governador do Paraná, Ratinho Jr., enviado no dia 27 de maio para votação em regime de urgência na Assembleia Legislativa (Alep). Tal projeto institui o Programa “Parceiro da Escola”, que na prática quer terceirizar a gestão administrativa de 204 colégios públicos, cerca de 10% da rede estadual de ensino. Entidades ligadas à educação divulgaram uma nota pública contra esta lei, pois além de considerarem uma afronta a aprovação da matéria, mesmo diante das manifestações de contrariedade de profissionais da educação, também julgam se tratar de um evidente processo de privatização da gestão escolar por meio da terceirização de uma atividade-fim da escola pública.
Devido a isso teve início, em 3 de junho, uma greve da educação estadual, com um grande ato que reuniu mais de 20 mil pessoas em Curitiba e protestos realizados em todas as regiões do estado, com a participação de estudantes, movimentos sociais e da população. Contudo, tamanha mobilização e reação popular em defesa da greve e contra a privatização das escolas não alteraram a posição do governador Ratinho Jr., que insistiu na votação do projeto. Projeto esse que não teve qualquer consulta à comunidade escolar, nem comprova sua suposta “economicidade” e vantagens.
O texto foi aprovado em três sessões realizadas entre dois dias, todas de forma on-line, estratégia adotada pelo Legislativo para tentar escapar da cobrança da sociedade, que ocupou a Alep para se manifestar. O projeto recebeu 39 votos favoráveis e 13 contrários e rapidamente foi sancionado pelo governador. Somam-se a todo esse desespero na aprovação e desrespeito à educação pública os assédios e ameaças de punição do governo para tentar frustrar a adesão da categoria à greve e os ataques judiciais contra o APP-Sindicato. O governador Ratinho Jr. chegou a solicitar a prisão da presidenta da APP, Walkiria Olegário Mazeto, em função da greve e da pauta contra a privatização das escolas.
Os bens e serviços públicos são mais importantes do que nunca, tendo em vista o aumento das catástrofes climáticas, o crescimento das desigualdades e a elevação da instabilidade política no mundo todo. A pandemia de Covid-19 parecia ter desvelado os efeitos desastrosos da austeridade, dos cortes na seguridade social e da privatização dos serviços de saúde, bem como evidenciado a necessidade dos serviços públicos e das pessoas que neles trabalham, pois forma a base de uma sociedade sadia e resistente. Mas a visão supostamente “econômica” superou a democracia e nossos direitos, esta visão sustenta a liberdade associada ao capitalismo, aos mercados livres e ao direito de contrato. Quando se privatiza um bem ou serviço público, os contratos triunfam sobre a legislação. As decisões e os recursos financeiros seguem um caminho corporativo, distanciando-se da responsabilidade pública. Isso resulta em um aumento do poder do Executivo, que atua por meio de acordos com empresas privadas sem sofrer limitações.
E mesmo que a privatização não seja mais econômica, rápida ou eficiente, ela contribui para uma agenda maior, por isso sempre será defendida arduamente por seus aliados. Além disso, é crucial ocultar os fracassos da privatização, pois a população poderia votar a favor do retorno do controle estatal. Essa é uma das razões pelas quais a transparência costuma ser a primeira a ser sacrificada na privatização.
Quando privatiza-se a educação pública e as praias, privatiza-se a democracia, o que sinaliza uma significativa perda de direitos e liberdades. Muitas das nossas liberdades mais fundamentais deixam de existir quando estamos sob propriedade privada ou quando as cedemos em um contrato. Consequentemente, frequentemente perdemos o direito ou até mesmo a capacidade de participar na tomada de decisões públicas.
E não podemos nos enganar, não é uma diminuição do Estado: o que realmente está acontecendo é que o governo está sendo transformado. Não há como negar que o Estado hoje é maior e mais potente do que nunca, mas foi aos poucos sendo estruturado e gerenciado por empresas e contratos privados. Nesta última semana, experienciamos o avanço da entrega das praias às mansões de luxo, resorts, clubes, entre outras estruturas que inibem a circulação e promovem segregação da areia. Além de mais um jeito de tentar demonizar a escola pública e a visão crítica, trata-se de “Um Escola sem Partido” fingindo-se moderno, entregando às empresas a gestão das escolas. Por isso, mais do que nunca é necessário lutar contra a mercantilização da vida e pelas nossas liberdades e direitos. Não podemos esquecer que o comum, aquilo que é de todos, é o horizonte para a produção de relações sociais e de um espaço destinado ao bem-estar de todas e todos, por isso sua defesa é imprescindível e irrevogável.
(*) Bianca Valoski é doutoranda no Programa de Pós Graduação em Políticas Públicas da UFPR, dentro da linha de pesquisa em Economia Política do Estado Nacional e da Governança Global. É servidora da Câmara Municipal de São José dos Pinhais, onde trabalha com finanças públicas.