“Em cada esquina, um amigo, em cada rosto, igualdade, Grândola, Vila Morena, Terra da fraternidade”
– Zeca Afonso, músico popular português
Quarteladas não são revoluções. O levante militar de 25 de abril de 1974 em Portugal não foi, simplesmente, um coup d’état, um golpe de Estado. Uma revolução não deve se confundir com o triunfo de uma revolta militar, mesmo quando se trata de uma insurreição com apoio popular.
Não é incomum que golpes militares ou rebeliões de quartel funcionem, historicamente, como um sinal de que uma tormenta muito maior se aproxima. As operações palacianas podem “abrir uma janela” por onde irá entrar o vento da revolução que estava contido.
Em Portugal, o processo da revolução política transbordou, como na Rússia de fevereiro de 1917, porque o exército tinha sido dilacerado pela guerra. Quando, no 1º de maio de 1974, centenas de milhares de pessoas desfilaram durante horas até o estádio de Alvalade, carregando milhares de bandeiras vermelhas para recepcionar os que voltavam do exílio e abraçar os que saíram das prisões, estavam marchando em direção aos seus sonhos de uma sociedade mais justa. Descobriam, surpresas, a força social de sua mobilização. É dessa experiência prática compartilhada por milhões que são feitas as revoluções sociais.
Em 1972, o general Antônio Spínola, ex-comandante na Guiné-Bissau, publicou o livro “Portugal e o Futuro”, em que defendia a necessidade de uma transição estratégica para o Império colonial arcaico. O governo de Marcelo Caetano autorizou a publicação do livro. O parecer favorável foi feito por ninguém menos que o general Costa Gomes.
Foi o primeiro sinal da divisão na alta oficialidade das Forças Armadas. A guerra nas colônias mergulhou Portugal em uma crise crônica. Um país de dez milhões habitantes, acentuadamente defasado da prosperidade europeia dos anos sessenta, sangrando pela emigração da juventude que fugia do serviço militar e da pobreza, não podia continuar mantendo um exército de ocupação de dezenas de milhares de homens, indefinidamente, em uma guerra africana.
O que não se sabia, então, era que o livro de Spínola era somente a ponta de um iceberg e que, clandestinamente, na oficialidade média, já estava se articulando, embrionariamente, o Movimento das Forças Armadas, o MFA. A fraqueza do governo Marcelo Caetano era tão grande que cairia como uma fruta podre, em poucas horas. A nação estava asfixiada pela ditadura, abatida pela pobreza, humilhada pelo atraso, afrontada pela injustiça e exaurida pela guerra. Pela porta aberta pela revolução anti-imperialista nas colônias, iria entrar a revolução política e social na metrópole.
Não há, é certo, um sismógrafo de situações revolucionárias. Ainda na manhã dia 25 de Abril, ao ouvir pelo rádio a comunicação do levante militar do MFA, uma multidão de milhares de pessoas saiu às ruas e se dirigiu à Baixa de Lisboa, cercando o Quartel da GNR (Guarda Nacional Republicana) no Largo do Carmo, onde Marcelo Caetano se refugiara, e negociava com Salgueiro Maia os termos da rendição, exigindo a presença de Spínola. Algumas centenas de pides – Polícia Internacional de Defesa do Estado – entrincheirados na sede, dispararam sobre a massa popular. No Porto, milhares de pessoas cercaram os policiais no edifício da Câmara, e estes responderam atirando sobre a população. E foi só isso a força da resistência. Deixaram quatro mortos.
A última revolução
A revolução portuguesa foi a última revolução social na Europa Ocidental do final do século XX. Ainda que interrompida, a dinâmica de revolução social anticapitalista foi um dos seus traços chave. O conteúdo social do processo que veio no ano e meio que sucedeu ao 25 de abril foi determinado em um contexto complexo: a revolução tinha tarefas pendentes – fim da guerra colonial, independência das colônias, reforma agrária, trabalho para todos, fim da sangria da emigração da juventude, elevação dos salários, acesso à moradia, direito ao ensino público, inclusive universitário, igualdade para as – que não se resumiam à derrubada da ditadura.
A economia portuguesa, pouco internacionalizada, mas já razoavelmente industrializada, se estruturava na divisão internacional do trabalho em dois “nichos”, os dois pilares empresariais do regime: a exploração colonial e a atividade exportadora. Sete grandes grupos controlavam quase tudo. Ramificavam-se em 300 empresas que tinham 80% dos serviços bancários, 50% dos seguros, 8 das 10 maiores indústrias, 5 das 7 maiores exportadoras.
Os monopólios comandavam, mas a dinâmica de crescimento era oscilante. O país permaneceu, comparativamente, estagnado, enquanto a economia europeia vivia o boom do pós-guerra. Em Portugal, não houve alívio social. A superexploração do trabalho manual se manteve, agravada pelas sequelas sociais da guerra colonial. A ordem salazarista se manteve depois da morte do ditador, com um implacável braço armado – a PIDE – 20 mil informantes, mais de dois mil agentes.
O que determinou o seu vigor foi uma combinação de fatores sociais e políticos, mas o mais importante foi a entrada em cena da mobilização das classes populares com uma disposição de luta revolucionária que não podia ser contida pela repressão, e não a presença de um dos Partidos Comunistas mais poderosos da Europa.
A queda do regime foi o ato inaugural de uma etapa política de radicalização popular incomparavelmente mais profunda – uma situação revolucionária – em que foram sendo construídas as experiências de auto-organização. No 1 de maio, uma semana depois da queda de Caetano, uma manifestação gigantesca em Lisboa demonstra que uma irrupção de massas já começou. Comemora-se a libertação dos presos políticos, soltos em Caxias e Peniche, assim como no famigerado Tarrafal, em Cabo Verde. Álvaro Cunhal e Mário Soares chegam do exílio e, pela primeira vez, discursam. Soares faz exigência pública ao MFA e a Spínola, indicado presidente, defendendo que o PS e o PCP, nas suas palavras, os dois partidos mais representativos da classe operária, deveriam ser o núcleo do governo.
Já no 28 de abril, os moradores de barracas da Boavista em Lisboa ocuparam casas vazias de um bairro social – construções feitas pelo Estado – e se recusaram a sair, mesmo quando cercados pela polícia e por tropas, sob o comando do MFA, realizando a primeira ocupação. No dia 30 de abril, a primeira assembleia universitária de Lisboa reúne mais de 10 mil estudantes no Técnico, a faculdade de engenharia. No dia 2 de Maio é autorizado o regresso de todos os exilados. Desertores e refratários do Exército são anistiados.
No dia 3 de maio generaliza-se uma onda de ocupações de casas desocupadas na periferia de Lisboa, com forte iniciativa de militantes de várias organizações de extrema-esquerda. O embarque de uma unidade militar para África é impedido. Em 5 de maio, trabalhadores dos TLP (telefônicos), Caixa de previdência de Faro e Hospital do Porto, reúnem-se para exigir a demissão das chefias. Em Évora, os trabalhadores transformam as Casas do Povo em sindicatos agrícolas. Uma vaga de greves começa, encabeçada pelas grandes concentrações operárias, como na Lisnave e na Siderúrgica Nacional, exigindo a reintegração dos demitidos, desde o início do ano, e salários. Trabalhadores do Diário de Notícias, o principal matutino, ocupam o jornal, e impedem a entrada dos administradores, que são depois demitidos.
Meia dúzia de exemplos que são apenas uma ilustração de que, ainda antes de completar um mês do fim da ditadura, a revolução invadia todas as esferas da vida social e ocupava, além das ruas, as empresas, escolas, universidades, hospitais, oficinas, sindicatos, jornais, rádios, e até as casas. Mas a história foi ingrata.
A Revolução dos Cravos foi tardia, dramaticamente atrasada, depois de 48 anos de ditadura, de 13 anos de guerra colonial e, também, por isso, radical; mas ficou isolada. O 25 de abril detonou uma explosão social muito superior ao maio de 1968 francês que o antecedeu, e maior, também, que a onda anti-franquista que deslocou a ditadura no Estado espanhol, três anos depois. A revolução portuguesa foi uma revolução solitária.
A revolução colonial
O serviço militar obrigatório era de assombrosos quatro anos, dos quais pelo menos dois eram cumpridos no ultramar. Mais de dez mil mortos, sem contar os feridos e mutilados, na escala de dezenas de milhares. Foi do interior desse exército de alistamento obrigatório que surgiu um dos instrumentos políticos decisivos do processo revolucionário, o MFA. Respondendo à radicalização das classes médias da metrópole e, também, à pressão da classe trabalhadora da qual uma parcela dessa oficialidade média tinha sua origem de classe, cansados da guerra, e ansiosos por liberdades, rompiam com o regime.
Estas pressões sociais explicam, também, os limites políticos do próprio MFA, e ajudam a compreender porque, depois de derrubar Caetano, entregaram o poder a Spínola. O próprio Otelo Saraiva de Carvalho, a principal liderança da insurreição militar do 25 de abril, foi defensor, a partir do 11 de março, do projeto de transformar o MFA em movimento de libertação nacional, à maneira de movimentos militares em países da periferia, como no Peru do início dos anos setenta. Fez o balanço com uma franqueza desconcertante: “Este sentimento arraigado de subordinação à hierarquia, da necessidade de um chefe que, por cima de nós, nos orientasse no ‘bom’ caminho, nos perseguiria até o final”.[2]
Esta confissão permanece uma das chaves de interpretação do que ficou conhecido como o PREC (processo revolucionário em curso), ou seja, os doze meses em que Vasco Gonçalves esteve à frente do II, III, IV e V governos provisórios. Ironicamente, assim como muitos capitães se inclinavam a depositar excessiva confiança nos generais, uma parcela da esquerda entregava aos capitães, ou à fórmula unidade do povo com o MFA, defendida pelo PCP, a liderança do processo.
Diz-se que, em situações revolucionárias, os seres humanos excedem-se ou se elevam, entregando-se na melhor medida de si próprios. Aparece, então, o que têm de melhor e pior. Spínola, enérgico e perspicaz, era um reacionário pomposo, com poses de general germanófilo, com um incrível monóculo do século XIX. Costa Gomes, sutil e astuto, era, como um camaleão, um homem da oportunidade. Do MFA surgiram as lideranças de Salgueiro Maia ou Dinis de Almeida, valentes e honrados, mas sem educação política; de Otelo, o chefe do COPCON, uma personalidade entre um Chávez e um Capitão Lamarca, ou seja, entre o heroísmo da organização do levante e o disparatado das posteriores relações com a Líbia e as FP-25 de abril; de Vasco Lourenço, de origem social popular, como Otelo, atrevido e arrogante, mas tortuoso; de Melo Antunes, instruído e sinuoso, o homem chave do grupo dos nove, o feiticeiro que termina prisioneiro de suas manipulações; de Varela Gomes, o homem da esquerda militar, herói da rebelião de Beja nos anos sessenta, discreto e digno; de Vasco Gonçalves, menos trágico que Allende, mas, também, menos bufão que Daniel Ortega.
Foi da tropa, também, que surgiu o “Bonaparte”, Ramalho Eanes, impenetrável, petulante e sinistro, que enterrou o MFA. No dia 25 de novembro de 1975, foi ele que comandou, em um contragolpe fulminante, a repressão militar que garantiu a estabilização do regime democrático-liberal, apoiado na maioria da Assembleia Constituinte eleita em 25 de abril de 1975, que era desafiada pelo poder popular da auto-organização dos trabalhadores e da juventude. Esse protagonismo legitimou sua candidatura às eleições presidenciais de 25 de abril de 1976, com o apoio do Partido Socialista de Mário Soares e, atrás do PS, todas as forças reacionárias.
A ameaça de guerra civil foi contornada, a revolução social foi derrotada, mas foi imperativo a transferência de bilhões de marcos alemães e francos franceses para financiar as reformas que garantiram a conquista de direitos sociais como a Previdência Social, a universalização do acesso à saúde pública e do ensino gratuito. O perigo de revolução abriu caminho para as reformas.
Foi bonita a festa, pá.
(*) Valério Arcary é historiador e professor titular aposentado do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo.