Dizer que Israel tem o direito de se defender é como dizer que um homem que comete abusos constantes tem o direito de se defender porque sua vítima o agrediu. Israel não é uma nação inocente sob ataque e se defendendo, como está sendo retratado por grande parte da mídia internacional. É um regime de apartheid colonial, estabelecido sobre as ruínas da Palestina e às custas do povo palestino em 1948.
Colonialistas, ocupantes e regimes de apartheid não têm o direito de defender suas ocupações e sistemas de apartheid. São os ocupados que têm o direito, de acordo com as leis internacionais, de se defenderem e libertarem seus países. A maioria dos colonos judeus está armada e é membro do corpo militar de reserva de Israel; Israel sabia do risco que corria ao perpetrar a Catástrofe (al-Nakba) de 1948, ocupando o país de outros e negando aos palestinos seus direitos por não serem judeus, no que foi estabelecido como um Estado judeu.
Quando Israel se estabeleceu na Palestina em 1948, fez uma limpeza étnica de mais de 70% do povo palestino – entre 800 mil e 900 mil pessoas –, ocupou 78% do país e destruiu 531 cidades e vilarejos, incluindo 47 vilarejos no Distrito de Gaza, deslocando seus 80 mil residentes. A grande maioria dos palestinos deslocados refugiou-se em Gaza e, atualmente, somam centenas de milhares. Todos os kibutzes e colônias judaicas atacadas pelos combatentes do Hamas em 7 de outubro foram construídas sobre as ruínas dessas 47 aldeias ao redor de Gaza, incluindo Jiyya, Burayr, Hamama, Najd, Dimra e Simsim.
Antes da Nakba, a Faixa de Gaza e a área ao seu redor, chamada de “envelope”, constituíam o “Distrito de Gaza” e tinham uma área de 1.111 quilômetros quadrados. A agressão de Israel em 1948 reduziu Gaza ao que é hoje: 365 quilômetros quadrados, com uma população de 2,3 milhões de habitantes. Tem 41 quilômetros de comprimento e de 6 a 12 quilômetros de largura, além de uma das maiores densidades populacionais do mundo, com 6,3 mil pessoas por quilômetro quadrado.
70% dos 2,3 milhões de habitantes de Gaza são refugiados que passaram por limpeza étnica nesses vilarejos e em outros lugares. Suas fazendas, casas e pertences foram roubados, e eles foram expulsos para viver na miséria em Gaza, que, nos últimos vinte anos, se tornou o maior e mais impenetrável campo de concentração do mundo, cercado por arame farpado e restringido por todos os lados. Os habitantes de Gaza estão sendo punidos coletivamente por Israel, que os privou de seus direitos humanos e nacionais inalienáveis. A comunidade internacional os abandonou; a algumas centenas de metros de distância, os habitantes de Gaza observam colonos de todo o mundo vivendo no luxo, desfrutando dos frutos de suas fazendas.
Uma das coisas que enfureceu os líderes e generais israelenses foi o fato de um pequeno contingente de combatentes ter conseguido romper o “exército invencível” e, em poucas horas, infligir uma grande derrota à sua tecnologia de inteligência, espionagem e escuta eletrônica, que não conseguiu detectar o ataque. O mundo não levou em conta que os israelenses sofreram uma grande derrota militar. Fotos e vídeos mostram tanques israelenses em chamas com combatentes erguendo bandeiras palestinas sobre eles e soldados capturados. A mensagem dominante de Israel sobre a morte e o sequestro de israelenses oculta o fato de que os combatentes do Hamas lutaram e derrotaram as tropas israelenses em 7 de outubro, ocuparam suas bases militares, de segurança e policiais, confiscaram suas armas e detiveram entre seus prisioneiros dezenas de soldados e generais para serem trocados por mais de 6 mil presos políticos palestinos, incluindo crianças e mulheres, que definham nas prisões da ocupação. Sim, civis israelenses foram feitos reféns e muitos israelenses foram mortos, embora os relatos de atrocidades em muitos casos ainda não tenham sido comprovados.
Israel apresentou os combatentes do Hamas apenas como terroristas. O Ministro da Defesa de Israel, Yoav Gallant, foi além em 9 de outubro, descrevendo os palestinos como animais e dizendo: “Estamos impondo um cerco completo a Gaza. Sem eletricidade, sem comida, sem água, sem combustível. Tudo está fechado. Estamos lutando contra animais humanos e agiremos de acordo”, e o presidente de Israel, Isaac Herzog, disse em uma coletiva de imprensa em 13 de outubro que não há civis inocentes em Gaza. “É uma nação inteira que é responsável”, disse ele. Apresentar os combatentes do Hamas como animais atacando civis é a justificativa para sua guerra vingativa e bárbara de genocídio contra os palestinos em Gaza.
Shahar Sigal / IDF
Divisão de artilharia israelense treina nas Colinas de Golã em agosto de 2017
Israelenses sobreviventes do ataque declararam em entrevistas à mídia israelense que a maioria dos civis israelenses foi morta como resultado do bombardeio do exército israelense contra suas casas e da troca de tiros com combatentes do Hamas para evitar a tomada de reféns, de acordo com a diretriz militar israelense de 1986 chamada Diretriz Hannibal. Todos os vídeos do ataque mostram os combatentes portando apenas metralhadoras, o que significa que eles não poderiam ter bombardeado as casas. O jornal israelense Haaretz relatou que o exército só conseguiu restaurar o controle depois de admitir ter “bombardeado” as casas dos israelenses que haviam sido capturados.
Para encobrir o miserável fracasso de seu exército e de seu governo, Israel recorreu a táticas usadas por regimes coloniais em outros lugares para punir civis. Todos os colonialistas e ocupantes chamaram de “terrorismo” a resistência que enfrentaram, desde os colonialistas franceses, britânicos e holandeses até os nazistas, fascistas e o regime do apartheid sul-africano. Esses movimentos de resistência podem ser reduzidos a terrorismo? Se a Austrália fosse ocupada amanhã, os atos de resistência contra os ocupantes seriam considerados terrorismo?
A alegação de Israel de que está combatendo o terrorismo e quer eliminar o Hamas é ridícula, uma vez que não conseguirá eliminar a resistência palestina – seja do Hamas ou de qualquer outro grupo. De qualquer forma, se o Hamas fosse eliminado, surgiria outro grupo mais forte. Onde houver ocupação e opressão, sempre haverá resistência. Agora, no entanto, o que Israel está fazendo, e o mundo está testemunhando diariamente, é a matança de civis e crianças e a destruição de milhares de casas, grandes edifícios residenciais, escolas, hospitais, ambulâncias, mesquitas, igrejas, mercados, padarias e outras infraestruturas públicas. Tudo o que eles precisam fazer para encobrir seus crimes de guerra é dizer que um líder do Hamas estava residindo no local ou que havia um túnel sob o edifício, o hospital ou a mesquita, sem fornecer um pingo de evidência. E ainda assim essas mentiras são repetidas e distribuídas pela mídia ocidental.
A guerra de Israel contra Gaza é uma guerra covarde e genocida de um exército classificado como o quinto mais poderoso do mundo, que bombardeia civis com bombas aéreas dia e noite há quase quatro semanas, lançando, até agora, mais de 25 mil toneladas de explosivos sobre a Gaza sitiada – o equivalente a duas bombas nucleares, de acordo com o grupo EuroMed Rights em Genebra. Cada bomba está queimando e despedaçando os corpos de centenas de bebês, homens e mulheres, e dizimando famílias inteiras. Além disso, Israel cortou o fornecimento de alimentos, água, eletricidade, combustível, comunicação e Internet.
O Ministério da Saúde em Gaza documentou, de 7 de outubro a 7 de novembro, a morte de 10.165 pessoas, incluindo 4.237 crianças e 2.509 mulheres, com mais de 27.000 feridos. Além disso, mais de 2 mil pessoas, incluindo cerca de 1.350 crianças, foram dadas como desaparecidas sob os escombros. Na Cisjordânia, 155 pessoas foram mortas e 2.040 foram presas. Isso equivale, em termos proporcionais de população, a 112.323 australianos mortos e 298.350 feridos – mais do que toda a população do Território da Capital Australiana – [ou a 54 mil paulistanos mortos, tomando em conta a população de 12 milhões da capital paulista].
Estima-se que 1,4 milhão de pessoas em Gaza estejam deslocadas internamente e, de acordo com o Ministério de Obras Públicas e Habitação de Gaza, mais de 50% de todas as casas e unidades habitacionais foram destruídas. Os hospitais relataram o uso por Israel de armas proibidas internacionalmente, como o fósforo branco.
Os palestinos têm sido vítimas de atos de terrorismo do Estado israelense e de uma lenta guerra de genocídio há 75 anos. Em 1948, eles foram massacrados, estuprados e submetidos a uma limpeza étnica, conforme documentado por historiadores palestinos, israelenses e internacionais. Suas propriedades e pertences foram confiscados, e lhes foi negado o direito inalienável de retornar ao seu país. Todos esses crimes contra a humanidade foram cometidos e continuam a ser cometidos contra eles por serem palestinos, que não têm o direito de retornar ao que agora é definido como a terra e o Estado exclusivamente judaicos, com a total cumplicidade dos governos ocidentais, especialmente do grupo de países anglo-saxões que formam a chamada coalizão “Cinco Olhos” [Austrália, Canadá, Nova Zelândia, Reino Unido e EUA].
É hora desses países serem responsabilizados, assumirem suas obrigações de acordo com a Convenção de Genebra e forçarem Israel a reconhecer os direitos humanos e nacionais do povo palestino e o direito da Palestina de existir. Sem o apoio cego e a proteção desses governos, Israel não ousaria cometer esses crimes contra a humanidade e desafiar a comunidade internacional como está fazendo. E sem que os palestinos conquistem seus direitos legítimos, nunca haverá paz no Oriente Médio.
(*) Ali Kazak é um ex-embaixador palestino e sobrevivente da Nakba.
(*) Tradução de Pedro Marin