Clichê. Fiquei surpresa ao escutar certa vez de uma professora de alemão, cuja crueza seria odiosa se não contivesse uma lógica quase virginal, que os clichês são ferramentas do bem. Ao menos, “quando cumprem a função de dar noções sobre um povo ou um lugar a conhecer”. Todos precisam ser introduzidos uns aos outros, pensei eu, que, como muitos de nós, aprendi a temer o óbvio. E, desde então, presto atenção a lugares-comuns sem busca de alguma dose de informação útil.
Que seria de nós, latino-americanos, sem o clichê?
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Che: clichê tipo exportação ou parte da identidade cultural?
Nossos ícones são Che Guevara, Frida Kahlo, samba, cumbia, banana, milho, cores, toque, pobreza, corrupção, entre tantos outros, porque essas coisas, reais ou virtuais, estão presentes. Uma imagem exportada raramente é responsável pelos problemas de um lugar, e muito menos por suas verdades. Ou alguém ignora o autoritarismo alemão, a higiene francesa, a pontualidade britânica?
Mas uma coisa é a latinidade turística, outra é identidade cultural. Os clichês úteis podem dar conta da primeira.
A América Latina está em voga. Estranha constatação, uma vez que o termo se refere à região do continente americano onde se falam as línguas românticas, derivadas do latim. O fato é que essa geografia, que se estende do México à Patagônia argentina, recebe agora uma dose de atenção que, ao parecer, antes não merecia. Conquistamos um espaço sob a lente cultural e econômica do primeiro mundo em crise e também figuramos nos interesses de países chamados emergentes, como a China, além de outros lugares aos quais ainda não damos bola. Mais relevante do que isso é: há esforços de reconhecimento mútuo, aqui, entre vizinhos.
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Nós, brasileiros, agora nos esforçamos para recuperar o tempo perdido, em que levamos a fama de “dar as costas” para o resto do subcontinente. Dar as costas: será que isso explica alguma coisa? Sempre houve distância cultural, mas o processo foi bastante mais complexo do que isso, e promover essa postura de indiferença não esclarece nada.
Eis um clichê inútil, que nem minha ex-professora defenderia.
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Quem dá as costas para quem?
Os portugueses mapearam o Brasil como se fosse uma ilha, cercado por rios. Defenderam, desde o “descobrimento” do país, a criação de um território com fronteiras naturais – o que pode ser conferido na evolução da cartografia da época e também nas discussões sobre o Tratado de Tordesilhas e a partilha do território sul-americano com a Espanha. Quando impuseram o português como idioma oficial do Império, tiveram trabalho proibindo uma língua preponderante – um tupi influenciado pela colonização –, que reinava em todo seu vasto território. Essa “hegemonia” não existia do lado espanhol.
O mito da “Ilha Brasil” é amplamente estudado, e seus movimentos vão da Colônia à República, com justificativas geográficas, culturais, políticas e, finalmente, linguísticas. Foi adaptado e reforçado sempre que o momento pedia, como nos anos 1970, em que reinava o preconceito em relação ao termo “América Latina”. Nessa época, em que os Estados Unidos se esmeravam para varrer do mundo o pensamento revolucionário com sua Operação Condor, exaltar a latinidade era sinal de subversão.
Resultado? Seguimos até hoje divididos pelas ideias de Tordesilhas. E agora em que a referência do chamado Primeiro Mundo caminha a passos mancos, outra vez “somos da América e queremos ser americanos”. A história mostra que, em lugar de um ter dado as costas ao outro, somos frutos de interesses e modelos impostos e, só quando eles fraquejam, sentimos a necessidade de buscar nossas próprias referências.
Devidamente apresentados, chegou o momento de ir além do clichê.
Cara América
É do vigor e das várias caras desta América que pretende tratar essa coluna. De temas culturais – novos, passados e perdidos entre manchetes de jornal – que sejam relevantes e matem a saudável curiosidade dos interessados. Começo recomendando o videoclipe da canção “Latinoamérica”, recentemente lançada pelo Calle 13, duo porto-riquenho de hip hop que estourou em 2005, ao lançar seu primeiro álbum (homônimo).
Bastante reconhecido no eixo cultural do espanhol, o grupo composto pelos meio irmãos René Pérez (Residente) e Eduardo José Cabra (Visitante) mistura rap com ritmos populares latino-americanos, como reggaeton e cumbia. O estilo é direto: abundam o sexo e a violência, além de letras que denunciam os mais variados temas sociais da região.
Com as participações de três cantoras (a colombiana Totó la Momposina, a peruana Susana Baca e brasileira Maria Rita – sim, estamos aí), “Latinoamérica” consegue fazer uma bela colagem do que somos: “un pueblo sin pierna, pero que camina”. Vamos caminhando.
*Camila Moraes é jornalista e autora do blog La Latina.
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