A Escandinávia é o berço do modelo mais igualitário que o capitalismo já conheceu. Sua origem remonta à Suécia dos anos 1930, mais precisamente há 80 anos, quando concretizava-se a hegemonia social-democrata no governo do país nórdico, dando início a uma série de reformas sociais e econômicas que inauguraria um novo tipo de capitalismo, em oposição ao liberalismo das décadas anteriores cujo ato final foi a crise de 1929.
Nascia então o chamado modelo escandinavo, que rapidamente ultrapassaria as fronteiras suecas para se tornar influente no norte europeu, mas também uma referência importante na formulação de políticas econômicas heterodoxas (progressistas) em todo o planeta. O sucesso deste modelo se deveu à combinação de um amplo Estado de Bem-Estar com rígidos mecanismos de regulação das forças de mercado, capaz de colocar a economia em uma trajetória dinâmica, ao mesmo tempo em que alcançava os melhores indicadores de bem-estar entre países capitalistas.
No entanto, uma nova onda de liberalismo atingiria a região a partir dos anos 1990. O receituário ortodoxo (conservador) implementado desde então nos países escandinavos, a começar pela própria Suécia, visou essencialmente a desregulamentação financeira e a flexibilização do mercado de trabalho. A lógica destas reformas era, como de costume, retirar as amarras presentes na economia sob a forma de normas e instituições para que o mercado pudesse alocar os recursos (capital e trabalho) da maneira mais eficiente possível.
Nas entrelinhas, pregava-se um aumento das desigualdades como forma de retomar o estímulo à atividade empresarial: com salários e benefícios em queda, e redução na taxação e controle de capitais, os economistas liberais imaginavam ter encontrado a solução mágica para tirar a região da estagnação.
Os resultados desta estratégia nos países nórdicos são bastante contraditórios. Se é verdade que o crescimento econômico retornou momentaneamente, ele também se tornou mais irregular, e se multiplicaram as críticas dos problemas sociais decorrentes do aumento das desigualdades, que atingiram os piores resultados em mais de trinta anos. O episódio de violência na Noruega, no qual um atirador extremista visou militantes social-democratas no ano passado é um símbolo evidente da desestruturação social que resulta da crise econômica dos anos liberais.
Talvez a mais célebre voz a descrever a decadência recente que assola os países escandinavos seja o escritor sueco de novelas policiais e ativista de direitos humanos Henning Mankell. Em seus relatos, o individualismo, a ganância, a corrupção e a xenofobia são valores cada vez mais impregnados na cultura escandinava, em substituição ao espírito coletivista, solidário e integrador dos saudosos anos de ouro.
Coincidentemente, é para um pequeno país escandinavo, a Islândia, mais conhecido pelos seus vulcões que transtornam o tráfego aéreo do continente, que se dirigem agora os holofotes por conta da ousadia com que enfrenta uma das piores crises de sua história. Ali, a situação econômica e social crônica provocada pelas políticas liberais levou a um questionamento sem precedentes na Europa ocidental da estratégia de desregulamentação dos mercados.
A ilha escandinava foi o primeiro país a sentir os efeitos da derrocada financeira. Seus principais bancos eram estrangeiros e colocaram a economia islandesa em uma ciranda financeira que anteciparia, em escala reduzida, os efeitos da crise global.
Atraídos pelo ganho fácil, os islandeses apostaram as suas economias em produtos financeiros para lá de suspeitos. A bolha especulativa produzida com a poupança da população estourou por fim quando revelou-se que os bancos não seriam capazes de garantir os depósitos, pois haviam investido nos famigerados títulos hipotecários norte-americanos. O colapso levaria o país à ruína.
Como consequência, o desemprego explodiu e um número impressionante de islandeses deixou o país. Mas os que ficaram deram início a um movimento de resistência civil organizado. Os resultados não tardaram: o governo conservador foi substituído por um de maioria social-democrata que decidiu romper com visão ortodoxa do livre-mercado. Passou-se a interferir diretamente no câmbio, produzindo uma desvalorização da moeda local, retomou-se os controles de capital e os investimentos no sistema de segurança social, e bancos foram nacionalizados para garantir a liquidez aos cidadãos.
A Islândia conseguiu assim evitar um mal maior e, sobretudo, chamar a atenção para a necessidade de se resgatar o modelo escandinavo. A chave deste modelo havia sido a capacidade de envolver as elites em um pacto nacional no qual elas abriam mão da abundância injustificada em que viviam para contribuir a um objetivo maior, o bem-estar da população.
Para tamanha reviravolta, havia sido decisiva a iniciativa de economistas suecos, tendo à frente Gunnar Myrdal, que no início do século XX forneceriam o fundamento teórico para uma política econômica alternativa. A Escola de Estocolmo, como seria batizada esta ramificação do pensamento econômico heterodoxo, denunciou as mazelas do liberalismo e demonstrou a primazia da demanda das famílias para se retomar ciclos de bonança econômica, em contraposição aos estímulos inócuos de oferta que caracterizavam (e caracterizam ainda) a visão conservadora.
Hoje, os escandinavos mais uma vez alertam o mundo que liberar as forças de mercado equivale a abrir uma verdadeira “caixa de Pandora”. Para os que ainda caem nesta tentação, fica o recado da experiência islandesa. A revolução de Reyjkjavik resgatou a tradição heterodoxa dos economistas escandinavos, cujas reflexões inspiraram a redação de uma nova constituição no país, visando a retomada do controle social sobre os recursos econômicos como o caminho indispensável para a independência e a prosperidade. Defender o contrário é sustentar um dogma ferido de morte com a crise global.
Pedro Chadarevian é doutor em Economia pela Universidade de Paris, professor de Economia na Universidade Federal de São Carlos e editor do blog Outra Economia. Escreve quinzenalmente ao Opera Mundi às quintas-feiras.
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