Recentemente cumpriram-se dois anos do começo das ações bélicas no território ucraniano. O 24 de fevereiro de 2022: depois de várias ameaças que foram escalando as declarações entre o presidente norte-americano Joseph Biden e o russo Vladimir Putin, movimentos de tropas ucranianas na fronteira do Donbass e reunião de tropas russas na sua fronteira com a Ucrânia, a Rússia desfere um golpe incisivo em território ucraniano. Na primeira noite de ataque, a força aeroespacial russa (como é chamada sua força aérea), e a artilharia atingem 186 Centros de Comando e Controle e Inteligência (CCC+I) mostrando a magnitude da assimetria de forças. Esse ataque, na narrativa russa, foi chamado “Operação Militar Especial”, e na narrativa ocidental “Invasão Não Provocada”, deixando de lado a história que contextualiza a situação. Nesse momento declarei, como alguns analistas independentes, que se tratava de uma guerra relâmpago como resposta a uma historicamente crescente ameaça da OTAN e que, dada a assimetrias de força e as compreensíveis demandas russas, ela acabaria rapidamente na mesa de negociações.
Em termos técnicos foi uma “guerra relâmpago” que em menos de uma semana (três dias) levou o governo ucraniano, encabeçado pelo presidente Volodymyr Zelensky, a pedir negociações. Em 25/02, Putin e Zelenky aceitam a proposta turca de realizar as conversações de paz em Istambul, Turquia. As operações militares cessam no terreno, como corresponde ao período de negociações (mas que a mídia corporativa ocidental apontará como estancamento e erros estratégicos russos, com diversos veículos de comunicação chegando a afirmar, como o analista John Blake para a CNN, em 03/04/2022, que faltava combustíveis para os veículos terrestres russos, não obstante a Rússia ser o terceiro maior produtor de petróleo do mundo, segundo o BP Statistical Review of World Energy e o Instituto Brasileiro de Petróleo).
Em menos de um mês chega-se a um acordo, que teria sido a melhor solução para a crise, obrigando apenas ao respeito dos tratados já assinados anteriormente e evitando um maior derramamento de sangue. O acordo de paz, intitulado “Tratado de Neutralidade Permanente e Garantias de Segurança para a Ucrânia”, basicamente consistia no retorno aos Tratados de Minsk de 2014 (Minsk I) e 2015 (Minsk II), assinados com as autoridades de Alemanha e França como testemunhas. O nível de credibilidade moral do ocidente ficou evidente em 2022, quando a ex-chanceler Angela Merkel, uma das mediadoras daquele acordo, confessou que ele tinha sido uma farsa com o objetivo de ganhar tempo para armar e treinar a Ucrânia. Uma semana depois, o ex-presidente francês François Hollande confirmou a declaração de Merkel e justificou: “Desde 2014, a Ucrânia fortaleceu sua postura militar. De fato, o Exército ucraniano é completamente diferente daquele de 2014. Está mais bem treinado e equipado. Essa oportunidade ao exército ucraniano foi alcançada graças aos Acordos de Minsk”. Com essas declarações, a União Europeia reconhecia que o objetivo dos acordos nunca fora a paz, mas sim o preparo para a guerra contra Rússia.
Obviamente, um estadista da estatura do Putin não deixaria passar inadvertida essa farsa, perceberia esse movimento como uma clara ameaça à Rússia pelo desdobramento da OTAN nas proximidades de suas fronteiras e, consequentemente, reforçaria o preparo para o inevitável confronto. A esse fato somou-se a informação da inteligência russa sobre a instalação, em território ucraniano, de uma trintena de laboratórios biológicos financiados pelo Ministério da Defesa norte-americano, como reconheceria Victoria Nuland (quando não?) no Congresso americano. Também contava com a informação da instalação de uma dúzia de bunkers da CIA na Ucrânia e perto da fronteira russa para interceptar comunicações e controlar drones que poderiam operar no território russo.
Estes dados eram conhecidos pelo Kremlin, pelos estudiosos do tema e, certamente, pela mídia corporativa ocidental. Daí que colocar em todas as pautas dos jornais a obrigação de reforçar o caráter “não provocado” do ataque russo, fato que soava claramente forçado, comprometeu também a pretensa imparcialidade da mídia. Em realidade, a mídia corporativa internacional posicionou-se claramente no combate travado no teatro de operações comunicacionais, de forma a modular a percepção da opinião pública para condenar a “invasão não provocada e injustificada de Rússia em território soberano da Ucrânia” e recortar o fenômeno historicamente em 22/02/22, como se a invasão tivesse surgido como os cogumelos depois da chuva, ocultando a contextualização histórica que torna compreensível a atitude Russa e inaceitável o posicionamento da mídia ocidental. Note-se a diferença de tratamento da mesma mídia com relação à invasão do Iraque pelos EUA em 20/03/2003, que recebeu o irônico nome de código “Operation Iraqui Freedom” (Operação Liberdade do Iraque). Naquela época, como hoje com relação a esta crise ou ao genocídio perpetrado pelo governo israelense contra os palestinos, muitos analistas das Relações Internacionais, dóceis em legitimar, com seus recentes certificados de doutores, as posições políticas que a mídia corporativa pauta, tipificaram alegremente aquela invasão como “ataque preventivo”, mais uma vez; os EUA se sacrificavam para manter a democracia e a segurança no mundo.
Assim, a Guerra da Ucrânia, passou a operar com o apoio irrestrito do ocidente ideológico em três teatros de operações facilmente distinguíveis. No teatro midiático, condenando a “invasão não provocada” da Rússia sobre a Ucrânia que, de sair vitoriosa, não satisfaria sua voracidade imperial – que se estenderia até Lisboa –, provocando indignação e pânico na atordoada sociedade europeia. No ambiente econômico, com as sanções, que levariam a uma crise de produção que impediria à Rússia manter seu esforço de guerra e que provocariam uma crise político-social interna até à derrocada de Putin e à mudança de regime. No ambiente bélico, sustentando o esforço ucraniano com financiamento, armamento, munições, apoio de inteligência estratégica e treinamento da tropa, tudo o que enriquece e deixa feliz o complexo Político-Industrial-Militar-Midiático-HiTec americano.
Não obstante os esforços ocidentais, e ante a evidência inapelável dos fatos, em março de 2022 Zelensky assina um acordo de paz em Istambul e assim, sem mais derramamento de sangue, retificando os acordos de Minsk e reconhecendo o Pacto de Budapest (não permitir armamento nuclear no território ucraniano), acabava a Guerra da Ucrânia. Regressando a Kiev, Zelensky recebe uma ligação de Biden que, pensando, entre outros questões, nas próximas eleições americanas e em compensar a vergonhosa retirada de Afeganistão, o anima a quebrar o acordo e continuar na guerra com seu incondicional apoio (os laboratórios biológicos instalados na Ucrânia tinham as incriminadoras marcas de Hunter Biden, o seu filho). Como Zelenky ainda se mostrava reticente em continuar guerreando, recebe a visita do primeiro-ministro do Reino Unido, Boris Johnson, que o convence a continuar lutando e tomar parte da Rússia, para o qual comprometia o apoio incondicional dos EUA, Grã Bretanha, União Europeia e a OTAN, para continuar nessa guerra “até o último ucraniano”.
Assim começa uma outra guerra no Leste europeu, a Guerra na Ucrânia, uma guerra levada a cabo de forma indireta pelos EUA e a OTAN contra Rússia, uma guerra por procuração (ou uma proxy war, como estas guerras são mais conhecidas nos estudos de Relações Internacionais) em território e com a carne ucranianos. A Guerra da Ucrânia foi uma guerra relâmpago, mas a Guerra na Ucrânia seria uma guerra de desgaste, de atrito e posição. Uma guerra que pode assumir proporções alarmantes e consequências desastrosas para a humanidade. Uma guerra que pode decidir o fim do mundo decadente, unipolar e regido por regras ditadas pelos EUA para dar lugar à emergência de um mundo multipolar, regido por leis ou, no pior dos casos, como previra Einstein, o retorno a um mundo de trogloditas. Analisaremos a Guerra na Ucrânia nas próximas colunas.