“Guardo as sementes e as troco. Essa prática de conservá-las, de guardá-las para o ano seguinte e de colher as melhores vem dos conhecimentos ancestrais, herdados da minha mãe, dos meus avós. Sempre tive minhas próprias sementes”, relata Alicia Tambaco em sua horta familiar nos Andes equatorianos. Alface, coentro, feijão ou milho são alguns dos cultivos que podem ser observados em sua pequena horta, situada na comunidade de Colimbuela, no cantão de Cotacachi no Equador. Alicia não é partidária nem da monocultura, nem dos produtos químicos, e participa de feiras de sementes trocando-as quando tem excedentes.
La Marea
Alicia Tambaco em sua horta em Colimbuela, no Equador
Assim como Alicia, milhões de camponeses e camponesas em todo o mundo continuam seu trabalho de conservar, selecionar, reproduzir, trocar e distribuir suas sementes locais. Segundo a Via Campesina, 90% do camponeses do mundo seguem produzindo a maioria de suas sementes. Cada dia 17 de abril desde 1996, em memória do assassinato de 19 camponeses sem terra no Brasil, esse movimento celebra o Dia Internacional de Luta Camponesa, que este ano será dedicado à defesa das sementes.
“Decidimos falar esse ano das sementes por causa de todas as leis que estão sendo criadas, como a Lei Monsanto, e porque cada vez mais as empresas multinacionais estão privatizando-as para patenteá-las. Além disso, criminalizam os camponeses que realizam esta prática ancestral de conservar, proteger e resguardar suas sementes”, afirma Viviana Rojas, da comunicação da Via Campesina – Região América do Sul.
As sementes como ponto de encontro
Selecionadas e conservadas pelos camponeses ao longo dos séculos, as sementes camponesas têm a virtude de se adaptar a diversidade dos solos, climas e necessidades alimentares. Delas depende o alimento dos povos. Com a finalidade de resgatá-las e valorizá-las, há uma década a histórica União de Organizações Camponesas e Indígenas de Cotacachi (UNORCAC) organiza o Muyu Raymi, uma feira de sementes cujo propósito é transmitir os saberes e as práticas culturais das comunidades dessa região andina da província de Imbabura.
O Muyu Raymi nasceu graças à iniciativa de cinco mulheres que se reuniram ao redor de uma mesa para compartilhar as sementes que cada uma delas tinha trazido de sua própria comunidade. Naquela época, as sementes que cada família tinha eram desconhecidas porque não havia espaços onde compartilhá-las. Atualmente, é um encontro anual que acontece durante o mês de agosto, quando cada família ou participante — majoritariamente mulheres — leva entre 20 e 50 variedades de sementes. “Ali também se trocam o feijão, a ervilha, a lentilha… todos os grãos andinos. E também outras variedades como a jícama conhecida como “nabo mexicano” ou a mashua espécie de tubérculo andino, que estão se perdendo”, diz Alberto Bonilla, responsável pela área de Recursos Naturais da UNORCAC.
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Guardiãs das sementes
“Nós mulheres somos quem cuida das nossas sementes, e por isso dizemos que somos as guardiãs das sementes. Assim que encontramos uma ou duas, as guardamos para levá-las para casa e, dessa forma, vamos reproduzindo-as. Sempre estamos procurando a forma de conservá-las”, diz Magdalena Fueres, vice-presidente do Comitê Central de Mulheres da UNOCARC.
De acordo com Magdalena, sempre existiram grandes diferenças entre os homens e as mulheres na hora de identificar as necessidades das comunidades. Enquanto eles pensam em grande escala, as mulheres tendem a conservar a biodiversidade agrícola, já que são as encarregadas da reprodução cotidiana da vida. “Não pensamos em grandes quantidades, mas em um tantinho de batatas, outro tantinho de favas, outro de ervilhas. Assim vamos diversificando porque conhecemos a necessidade do lar”, conclui.
Valorizar o papel fundamental que, historicamente, as mulheres tem tido na administração e conservação das sementes é um dos eixos do trabalho do Comitê Central de Mulheres. “Como mulheres, devemos lutar para poder manter nossas próprias sementes, nossas próprias plantas, que são para nossa alimentação, nosso viver diário”, afirma Alicia Guaján, vice-presidenta da UNORCAC.
Ameaças à agricultura camponesa
A expansão das monoculturas para exportação, o controle da cadeia alimentar por um grupo cada vez mais reduzido de empresas agroindustriais multinacionais, a privatização das sementes, a introdução de cultivos transgênicos e a mudança climática são algumas das maiores ameaças que a agricultura camponesa enfrenta hoje.
A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) calcula que, durante o último século, 75% da diversidade agrícola mundial se perdeu. Essa realidade não é alheia às comunidades de Cotacachi. De acordo com um relatório da própria UNORCAC, de 2013, variedades de sementes como as de ervilhas e lentilhas estão se perdendo por causa da modificação dos hábitos alimentares e das mudanças climáticas. “Como consequência do aquecimento do planeta, temos de semear em uma maior altitude porque a terra já não produz”, afirma Alberto.
Apesar dessas ameaças, as mulheres camponesas continuam realizando esse exercício de conservar, proteger e resguardar as sementes com a certeza de que beneficiam tanto a alimentação de suas famílias como a do restante da sociedade. “As sementes são a base da soberania alimentar e se nós queremos consumir alimentos saudáveis nas cidades temos de apoiar essa luta por um projeto de sociedade alternativa e por uma agricultura diferente da industrial”, conclui Viviana.
(*) La Marea é editado por uma cooperativa de jornalistas e leitores.