No livro Assassinato no Expresso Oriente, clássico da literatura policial escrito por Agatha Christie no início dos anos 1930, um trem para devido à nevasca entre Belgrado e Zagreb – na época, cidades da Iugoslávia. Um crime acontece em um dos vagões da primeira classe e o detetive Hercule Poirot, personagem mais conhecido da escritora britânica, começa a investigar.
Não seria necessária toda a argúcia de Poirot para tentar encontrar os culpados pelos novos crimes que vêm acontecendo na mesma rota do Expresso Oriente, famosa linha ferroviária de luxo que, desde a Belle Époque até os anos 1960, ligava a Grécia e a Turquia até as cidades mais ricas da Europa Ocidental, como Londres, Paris e Munique.
Os milhares de refugiados sírios que fogem do conflito em seu país natal estão percorrendo o mesmo itinerário do trem, subindo da Turquia e da Grécia em direção às mesmas cidades, hoje ainda mais ricas que na época de Agatha Christie. A mudança de rota verificada esta semana os pôs exatamente na linha do lendário Expresso Oriente. O fato de andarem sobre os trilhos da via férrea é, no mínimo, emblemático de como a infraestrutura instalada pelo capital europeu para expandir-se rumo às fontes de recursos naturais – petróleo, antes de tudo – serve de mão-dupla para trazer o ricochete de séculos de “desenvolvimento desigual e combinado” (para usar um termo trotskiano). Ou será que os europeus nunca previram que sua riqueza atrairia o movimento de volta?
Agência Efe
Cena comum durante a crise humanitária na Europa: refugiados transitam a pé por ferrovias do continente rumo ao país de destino
A estreiteza do argumento europeu é atribuir a culpa a Bashar al-Assad e ao Estado Islâmico (EI), como se a crise fosse gerada apenas por uma situação excepcional da guerra civil na Síria, e não pela desigualdade estrutural entre a Europa e a chamada “vizinhança europeia”, conceito criado por Bruxelas para designar políticas públicas de mitigação do subdesenvolvimento no Oriente Médio, no Norte da África e nos países do Leste Europeu ainda não absorvidos pelo bloco. Se guerras anteriores no Iraque, na Líbia, no Líbano não geraram o fluxo em massa de migrantes que se vê hoje, foi porque o Ocidente foi rápido em contrabalançar a agressão com incentivos à recuperação e ao desenvolvimento local, além de agir com força militar para deter o avanço do fundamentalismo armado em todos esses países. Também, em nenhum deles o número de mortos escalonou tão rápido – mesmo os 110 mil mortos no Iraque ao longo de oito anos ficando muito abaixo dos 250 mil mortos na Síria nos quatro anos desde 2011. Os sírios não fogem porque de uma hora para outra decidiram abandonar uma histórica situação de penúria – mas, pelo contrário, porque tinham um bom grau de desenvolvimento, expresso em indicadores socioeconômicos acima da média na região, que foi minado pelo conflito interno prolongado e, mais ainda, pelo avanço real do medievalismo violento do EI – que em seu acrônimo original resgatava os nomes antigos, em árabe e em línguas europeias, para o Iraque (Mesopotâmia) e a Síria (Levante).
Famílias como a do menino Aylan Kurdi, morto numa praia da Turquia no dia 2 de setembro, não são miseráveis nem paupérrimas, muito menos oriundas de sociedades tribais acostumadas à lei islâmica. Foram criadas em um ambiente secularizado, urbano, de livre-mercado e acesso a bens de consumo, e que, até 2011, era plenamente pacificado – a despeito do autoritarismo da elite dirigente alauíta, que sustenta o regime dos Assad. Em uma declaração que foi habilmente ofuscada pela mídia internacional, a tia de Aylan foi direto ao ponto: “Estou responsabilizando todo o mundo por não ajudar o suficiente aos refugiados e por não parar esta guerra. E sei que o podem fazer. Se ninguém financiar os rebeldes, a guerra parará”.
E quem financia os rebeldes na Síria? Quem apostou um uma guerra interna, prolongada e supostamente de “baixa intensidade”, para vencer Assad por cansaço ou esgotamento? Quem aceitou tolerar o EI, que há quatro anos era um desdobramento da moribunda Al-Qaeda, para socavar o regime baathista sírio por dentro?
A União Europeia aprovou, em maio de 2013, o fim do embargo de armas para os rebeldes sírios, na prática tomando a decisão política de armar os grupos que usam a violência para tentar tomar conta do país. Logo depois de entrar no bloco, em 2013, a Croácia passou a enviar armas obsoletas do arsenal da antiga Iugoslávia para os rebeldes sírios, por meio da Jordânia. Reino Unido e França forneceram aos rebeldes não apenas dinheiro, mas também serviços de inteligência e, segundo a Reuters, operações secretas com forças de elite. Também fazem vista grossa quando a Turquia bombardeia e ataca posições dos rebeldes curdos (vários deles ligados ao grupo armado YPG, braço armado do movimento Rojava), que por sua vez combatem justamente o EI.
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Também seria preciso acumular muita ingenuidade para pensar que os Estados Unidos são isentos de responsabilidade política na crise. Desde 2011, os EUA baixaram sanções comerciais contra a Síria (que, a critério do governo norte-americano, podem incluir remédios e alimentos), treinaram rebeldes sírios em suas bases na Jordânia e no Qatar, despacharam o diretor-geral da CIA, Leon Panetta, para se encontrar com os líderes rebeldes e mantiveram sua marinha de guerra posicionada no litoral sírio. Mais ainda: por meio de seus aliados na região, especialmente a Arábia Saudita, a Turquia e o Qatar, canalizaram milhões de dólares em dinheiro e armas para os rebeldes.
E, no entanto, quando se trata da consequência direta dessa ajuda – a massa de refugiados deixando a Síria –, parece muito conveniente a Washington que este seja um “problema europeu”.
Se esse discurso prevalecer na mídia e na esfera pública, o ganho político para Washington será imenso. O dedo do Pentágono e da CIA no Oriente Médio mais uma vez gera uma lambança não por equívoco, mas por estratégia deliberada de desestabilizar regimes autoritários estáveis em vez de optar por medidas diplomáticas de pressão ou soft power para levar a soluções de compromisso pacíficas. O permanente estado de conflito entre os países árabes e seus vizinhos turcos, persas e judeus é garantia de demanda incessante para a indústria armamentista e suas correlatas – como a da construção civil e de infraestrutura de petróleo. Apesar de o atual mapa político da região ser um consequência direta da invasão ao Iraque em 2003 e do apoio norte-americano aos rebeldes sírios, os EUA ainda saem ilesos aos olhos do mundo no que diz respeito às consequências humanas.
Agência Efe
Na Macedônia, crianças refugiadas acenam em trem destinado à Sérvia; os dois países fazem parte do trajeto para entrar na União Europeia
Vizinhança europeia
No episódio mais tragicômico dessa novela, em agosto de 2013, tanto o Parlamento britânico quanto o Congresso norte-americano desautorizaram os respectivos executivos a intervir militarmente na Síria. No início de 2014, Obama fez papel de ridículo ao convocar a imprensa mundial para anunciar, ao vivo na TV, que tinha decidido “partir para a ação”… desde que pedisse permissão ao Congresso antes – o que nem chegou a fazer.
O fluxo de imigrantes não é novidade. Num filme de 2002, In This World (Neste mundo, que ganhou o Urso de Ouro em Berlim), o cineasta inglês Michael Winterbottom mostra numa mistura de encenação com documentário a jornada de afegãos que fogem da guerra iniciada pelos norte-americanos e aliados apenas no ano anterior. Andando a pé, de carona, escondidos entre cargas, enganchados nas ferragens debaixo de trens, esses refugiados não mediam esforços para chegar a Londres e outras cidades da Europa Ocidental – e vindo de muito mais longe. A novidade, portanto, não é a fuga; é a escala.
As políticas da União Europeia em direção à chamada “vizinhança europeia” não ultrapassam o limiar da mitigação de efeitos, apesar de um Oriente Médio desenvolvido e estável ser muito mais benéfico para a segurança europeia do que o atual estado de coisas gerado pela imiscuidade norte-americana. Enquanto persistir esse contraste global, as levas de migrantes e refugiados continuarão se movendo em direção aos centros do capital, como que por osmose, do meio hipossoluto para o hipersoluto, a fim de buscar algum equilíbrio.
A resposta da Europa a esse fluxo, entretanto, tem sido impermeabilizar suas “membranas”, as fronteiras, como o fez por meio do Acordo de Schengen (a zona de união alfandegária de países europeus, não necessariamente coadunante com o território da UE). No espaço Schengen, quem já está dentro circula livremente, mas para quem está fora os controles são draconianos, seja por terra, ar ou mar. O Mediterrâneo, antigamente chamado de “Mare Nostrum” pelos romanos, é cada vez mais uma fronteira natural que os gestores do espaço Schengen lutam para manter impermeável – ainda que seja à custa de crianças mortas na praia.
No mesmo trem
É por isso que os refugiados sírios dão a volta nas “ilhas de Schengen” criadas no mapa europeu (como Sérvia, Macedônia, Montenegro e outros países da ex-Iugoslávia, hoje tratados como “Bálcãs Ocidentais”, cercados de países da UE) para tentar ingressar no espaço comum, pois, pelas regras de Schengen, um imigrante deportado é enviado de volta para o primeiro país pelo qual entrou.
Esse é o grande pesadelo do primeiro-ministro da Hungria, o extremo-direitista Viktor Orbán, aluno dileto das políticas de Bruxelas e militante anticomunista desde os anos 80, criado e alimentado com dinheiro de seu conterrâneo George Soros. Orbán tem horror ao fato de seu país, por causa da posição geográfica, ser a porta de entrada privilegiada para os refugiados que vêm do Oriente Médio e, portanto, apela para a truculência. Como ele mesmo gosta de evocar, no século XVI a Hungria foi a barreira contra a invasão dos turcos otomanos, islâmicos, à Europa cristã. A resistência húngara rompeu dois cercos dos turcos contra Viena (1529 e 1683) e impediu que a conquista otomana se estendesse ao coração da Europa. Agora, não tem pudores em fazer de seu país a “tropa de choque” da União Europeia, mandando prender, atirar e até chutar quem foge desesperado da guerra criada pelos mesmos patrões.
São esses gestores do Estado-capital ocidental – em Bruxelas, Washington e Budapeste – os responsáveis pelos atuais assassinatos no Expresso Oriente, que Poirot facilmente poderia identificar. Longe do luxo dos vagões-leito do entre-guerras, feitos especialmente para as madames e os cavalheiros europeus, os trilhos do trem agora levam as vítimas do imperialismo (direto ou por procuração) que os tira de casa. Talvez a Europa, os EUA e a Hungria esqueçam que, no fundo, estão todos embarcados no mesmo trem, e que será pior para todos – e melhor para o EI – se a crise descarrilar de vez.
(*) Pedro Aguiar é jornalista