O encontro ocorrido no último 23 de maio entre o membro do Bureau Político do Comitê Central do Partido Comunista da China e ministro das Relações Exteriores da China, Wang Yi, e o Chefe da Assessoria-Especial do Presidente da República do Brasil, Celso Amorim, resultou em um importante documento programático e principiológico que vale a pena detalhar.
A bilateral aconteceu na mesma semana em que a general estadunidense Laura Richardson veio ao Brasil para os exercícios militares conjuntos que se estenderão pelos próximos meses entre a Marinha dos EUA e a Marinha brasileira, evento denominado “Southern Seas 2024”. A general comanda as Forças Navais do Comando Sul dos EUA/ 4ª Frota, que atua na região que se estende do Panamá ao Atlântico Sul.
Em entrevista ao jornal Valor Econômico, a militar enfatizou as relações Brasil-EUA e apresentou-as como mais interessantes ao Brasil do que as relações com a China, que, em suas palavras, têm “apenas 50 anos”, enquanto as relações Brasil-EUA têm 200 anos. Em clara resposta ao discurso chinês acerca da Iniciativa Um cinturão, Uma rota (Belt and road iniciative), Richardson argumentou que as relações Brasil-EUA são uma relação profícua, em que não há uma relação “ganha-perde”. Ela responde às palavras do presidente Xi Jinping, que enfatiza a promoção de relações ganha-ganha entre a China e os países com que esta estabelece laços comerciais.
As declarações da militar estadunidense não são posições individuais, mas a demonstração de que o tom da política externa dos EUA para a América Latina está subindo e tende a subir ainda mais nos próximos anos. Em março, por exemplo, tivemos notícia de que no Congresso dos EUA tramita um projeto de lei que “facilita o investimento e a adesão dos países latino-americanos ao Acordo Estados Unidos-México-Canadá (T-MEC) para contrabalançar a influência da China”. O projeto prevê o retorno das fábricas estadunidenses para o território dos EUA ou ainda para países latino-americanos. Ao que tudo indica, trata-se de um projeto de estender para todo o continente a política de instalação de “maquiladoras”, tal como ocorre no México desde o estabelecimento do NAFTA. Neste ano eleitoral, tanto Democratas quanto Republicanos têm apresentado extrema preocupação com a ampliação da presença chinesa na América Latina e prometem, em seus programas de governo, travar uma guerra comercial com o país asiático. Não há dúvidas de que a América Latina, considerada o “quintal natural” dos EUA, será o primeiro território desta luta.
Na contramão deste movimento dos EUA para retomar o controle sobre a região, o governo do Brasil estende seus laços com a China, que vem apresentando propostas de vultosos investimentos em infraestrutura, cruciais para o projeto de desenvolvimento brasileiro, para além de ser atualmente o maior parceiro comercial do Brasil.
A declaração assinada por Celso Amorim e Wang Yi aponta para o aprofundamento destes laços, na medida em que não se debruça em questões meramente comerciais, mas anuncia princípios comuns de política externa. O tema do texto é a guerra na Ucrânia. Brasil e China apresentam-se como possíveis mediadores ao defenderem, em relação ao conflito em curso, a desescalada das agressões, o estabelecimento do diálogo e a adoção imediata de medidas para assistência humanitária. Condenam, conjuntamente, o uso de armas de destruição em massa e os ataques a instalações nucleares. Por fim, apresentam o parágrafo mais importante do texto, que reveste-o de declaração de princípios: comprometem-se a combater a divisão do mundo em grupos políticos e econômicos isolados.
Essa última linha do documento é uma nítida resposta ao anúncio, pelos EUA, de uma guerra comercial, de vida ou morte, com a China. Responde à ofensiva em curso direcionada à América Latina. E pauta as relações de política externa dentro dos princípios do universalismo, da cooperação e do estabelecimento de laços por meios pacíficos.
Está articulada à noção de “comunidade de destino compartilhado da humanidade”, tal como anunciado pelo presidente Xi Jinping e já absorvido pelas Nações Unidas como meta de desenvolvimento comum. A resposta dos EUA a essa aproximação também no plano dos princípios certamente já está em curso. As declarações da general Laura Richardson fazem parte desta escalada e já receberam resposta da diplomacia chinesa. O Brasil precisa estar preparado para todo tipo de investida dos Estados Unidos, de modo a garantir que suas relações comerciais e políticas obedeçam aos seus próprios interesses de desenvolvimento e não aos desígnios de projeção de poder dos Estados Unidos, único interessado em uma “nova guerra fria”.
(*) Rita Coitinho é socióloga e doutora em Geografia, autora do livro “Entre Duas Américas – EUA ou América Latina?”, especialista em assuntos da integração latino-americana.